O retorno de Davi

(II Samuel 19)
— ABSALÃO MORREEEEEU! MORREU ABSALÃAAAAAAAAO! QUE QUE EU FAÇO, MEU DEUS, QUE QUE EU FAÇO? POR QUE VOCÊ NÃO ME LEVOU E DEIXOU ABSALÃAAAAAO? BUÁAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!
Quem é a histérica que tira o sossego de todo o Israel com esses berros? Pois não é outra senão Davi, o bravo guerreiro, libertador e unificador do reino. Andando de um lado para o outro numa sala que fica sobre o portão da cidade de Maanaim, ele chora, berra, esperneia. Que vergonha, que vergonha!
E Joabe pensava exatamente o mesmo enquanto ouvia a choradeira do rei. Sim, ele matara aquele moleque petulante, e daí? Se o deixasse vivo, ele ficaria calmo por um, dois, cinco anos; e depois armaria outra sedição. Fizera um favor a Davi livrando o reino de Absalão, e era assim que ele agradecia? Os soldados voltaram do campo de batalha em festa, mas tiveram que entrar em silêncio na cidade ao ouvir os gritos do rei. Então o negócio era lamentar aquela vitória estupenda, voltar para a cidade como se estivessem envergonhados de uma derrota só porque o filhinho do rei (que, aliás, era o inimigo) morrera? Ah, isso não ia ficar assim! Cansado daquela ladainha, Joabe subiu até a sala onde o rei dava seu espetáculo patético.
— Majestade…
— JOABE! ABSALÃO MORREEEEEEEEU! MEU FILHO MORREEEEEEEEEEU! MEU FILHO M…
— MORREU, MORREU, JÁ SEI! MAS QUE PORRA!
— …
— O senhor humilha seus soldados, sabia? Os caras foram pra guerra para salvar sua vida e a de sua família, e como é que o senhor agradece? Abre o berreiro, lamentando a morte daquele desgraçado que o traiu descaradamente! Que negócio é esse? Então o senhor ama os que o odeiam e vice-versa? Estaria muito feliz se Absalão estivesse vivo, e eu e os soldados, mortos.
— Peraí, Joabe, peraí. Não é bem assim…
— NÃO É BEM ASSIM O CACETE! O senhor trate de sair daqui, lavar essa cara e ir falar com os soldados, elogiá-los. Se o senhor não fizer isso, juro por Deus que amanhã nenhum deles estará do seu lado.
Davi olhou bem para Joabe e viu que ele não estava brincando. Então quem ele achava que era, para vir assim dando bronca no rei, sem mais aquela. Isso não ia ficar assim. Mas Joabe podia esperar, e além do mais ele tinha razão num ponto: os soldados podiam se sentir ofendidos com aquela choradeira. Então o rei lavou o rosto e foi sentar-se às portas da cidade. Quando souberam que Davi estava lá, os soldados foram reunir-se à sua volta.
Aquele negócio todo de unificar o reino era muito bonito no papel (ou no pergaminho, sei lá), mas na prática não funcionava muito bem. Na primeira crise mais séria, já se ameaçava uma nova ruptura. Primeiro foram as tribos do norte (tradicionalmente chamadas de “Israel”) que resolveram que seriam os primeiros a trazer Davi de volta ao trono. Eram afoitos, os israelitas: também haviam sido os primeiros a apoiar Absalão. Davi não se esquecera disso, por isso enviou os sacerdotes Zadoque e Abiatar com uma mensagem para os líderes de Judá:

Meus queridos,
Eu, assim como vocês, sou de Judá. Somos parentes, portanto. Então por que é que vocês vão ser os últimos a me aceitarem de volta? Estou um tanto confuso com isso…
D.

A mensagem mexeu com os brios dos líderes das tribos do sul. Claro: eles tinham certeza de ser o verdadeiro Israel; o resto era baiano. Ainda não sabiam se o rei só queria provocá-los, ou se pretendia mesmo aceitar o convite da baianada. Mas o rei resolveu deixar claro de que lado estava, substituindo Joabe por Amasa no comando de seu exército. Com isso, Davi matava dois problemas: livrava-se de Joabe, que lhe matara o filho e depois lhe faltara com o respeito, e demonstrava que pretendia aproximar-se mais de Judá, posto que Amasa era do sul. Fora também um dos conspiradores, comandande do exército de Absalão, mas isso era só um detalhezinho. Esse negócio de política sempre foi desse jeito, tudo esculhambado.
O importante é que os homens de Judá mandaram uma mensagem ao rei, implorando por seu retorno. Então Davi reuniu seus oficiais, despediu-se do povo de Maanaim e tomou o caminho do Jordão. E aqui, meus amigos, vemos como estar por cima da carne seca é sempre melhor. Primeiro foi Simei, lembram dele? Quando Davi saiu de Jerusalém às pressas, fungindo de Absalão, esse Simei o encontrara no meio do caminho e acompanhara a comitiva por um bom tempo, insultando o rei. Quando soube, porém, que Davi se preparava para atravessar o Jordão e voltar à capital, ele tratou logo de ir ao encontro do rei. Não foi sozinho: juntou mil homens da tribo de Benjamim para acompanhá-lo. Para se garantir, sabe como é… Quando Davi se preparava para atravessar o rio, foi surprenndido por um puxão em sua túnica. Era Simei prostrado no chão, todo choroso:
— Majestade! Majestade! Me perdoe, majestade! Esqueça o que eu fiz, por favor! São os tóchicos, majestade! Eu sei que fiz merda, por isso sou o primeiro israelita a vir aqui hoje.
Abisai, porém, ainda não se esquecera da humilhação daquele dia, e cochichou no ouvido do rei:
— Esse cara te amaldiçoou, majestade, e agora que o senhor está no poder de novo quer pedir desculpa. Assim é fácil! O negócio é matar esse feladaputa.
— Escuta aqui, Abisai. Eu não sei o que a mãe de vocês tinha nos peitos, pra saírem dois cabras sanguinários feito você e Joabe. Eu só sei é que hoje é dia de festa, e nenhum israelita será morto. — e virando-se para Simei: — Ouviu, zé ruela? Fique sossegado, não vai lhe acontecer nada. Agora larga a minha roupa, cacete.
Davi mal se livrou de Simei, e lá vem outro sujeito todo melífluo. Mas esse parecia um metaleiro: cabelo e barba compridos, sujo, fedido. Se não viesse mancando, o rei jamais saberia que se tratava de Mefibosete, o neto de Saul.
— Mefibosete, meu filho. Por que você não foi comigo, hein?
— Ah, majestade, nem me fale! Estou esses dias todos sem fazer a barba e sem tomar banho, de tanta tristeza.
— É, percebi. Você bem que podia aproveitar o rio pra tomar um banhozinho, não? Tá difícil, rapaz!
— Eu sei, eu sei. É que eu queria muito ter vindo com o senhor. Mas eu sou aleijado, não sei se dá pra notar. Então mandei meu jumento arrear meu escravo… Digo, o escravo arrear o jumento, para eu poder vir com o senhor. Mas o desgraçado do jumen… do ESCRAVO me traiu, foi contar aquele monte de mentiras ao senhor, que eu achava que ia ser rei e não sei mais o quê. Bom, mas o senhor sabe tudo, faça o que achar melhor. Toda a família do meu pai merecia ser morta, mas o senhor me recebeu como a um filho. Não tenho o direito de lhe pedir mais favor nenhum.
— Não precisa dizer mais nada, meu filho. Dividirei a propriedade de Saul entre você e Ziba.
Espera, espera, façamos uma pausa: primeiro o rei recebera Mefibosete no palácio, e lhe dera tudo o que fora de Saul. Depois, convencido por Ziba de que seu senhor o traíra, Davi passara ao escravo tudo o que era de Mefibosete. E agora que o neto de Saul dizia que Ziba o traíra, ele dividia tudo entre os dois? Meio precipitado, não? Deve ter sido isso que Mefibosete pensou, porque apenas respondeu:
— Deixa pra lá, majestade. Ziba pode ficar com tudo. Já estou feliz só por ver o senhor voltando para a casa.
Como se pode ver, foi o Dia Nacional do Puxa-Saco Israelita. Além desses, um velho de oitenta anos chamado Barsilai, que recebera o rei em Maanaim, também foi dar sua bajulada. Davi quis levá-lo a Jerusalém, mas ele recusou, dizendo que já estava velho demais e só daria trabalho. Se o rei quisesse, que levasse Quimã, seu escravo. Então acompanhou Davi até o outro lado do Jordão, recebeu a sua bênção e voltou para casa.
Mas eu dizia que aquele negócio de unificar o reino era complicado. Pois vejam: mal o rei acabou de atravessar o rio, os homens de Judá e de Israel já começaram uma discussão. Diziam estes:
— Majestade, por que é que esses cabras de Judá se acharam no direito de trazê-lo para este lado do Jordão?
Respondiam aqueles:
— Calaboca, baianada! O rei é nosso parente, vocês não percebem? Isso é motivo pra vocês já virem de peixeira na mão?
Treplicavam os israelitas:
— POIS QUE SEJE! NÓS TEMOS DEZ VEZES MAIS DIREITO DO QUE VOCÊS! — diziam isso porque representavam dez tribos, sendo Judá formado por apenas duas — Tão fazendo pouco de nós, é? Nós é que tivemos a idéia de trazer o rei de volta, que porra é essa?
A briga prosseguia. Davi, cansado, só olhava, evitando dar opinião. Eles que se entendessem, ele queria era sossego.
Mas não teria, claro.

8 comments

  1. Esse povo judeu era um povo complicado…
    Aliás, até hoje! Sabia que a extrema direita em Israel quer matar Sharon, porque eles acham Sharon mole com os palestinos?

  2. Não foi tão chato assim. Tudo bem, não é de se esporrar de rir, mas até que aquele “tóchico” e “zé-ruela” caíram muito bem. Agora, melífluo foi foda!

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