Amnon e Tamar

(II Samuel 13)
A essa altura da história, Davi já era um respeitável senhor com vários filhos adultos. Um desses, dos quais ouviremos falar muito ainda, era Absalão, filho de Davi com Maacá, princesa de Gesur. Absalão tinha uma irmã linda chamada Tamar. Essa filha do rei era um pitéu, e logo caiu nas graças de Amnom. E daí? E daí que Amnom era filho de Davi com sua primeira esposa, Ainoã. O rapaz sofria de amor pela meia-irmã. Bom, amor coisa nenhuma: ele queria era comer logo a moça. Mas não via como; Tamar era virgem e não podia encontrar-se a sós com nenhum homem. Amnom se corroía por dentro. Andava cabisbaixo, olheiras fundas no rosto pálido, espinha encurvada. E foi nesse estado deplorável que seu primo Jonadabe o encontrou um dia.
— Amnom, que acontece com você, rapaz? Tá um caco! Isso lá é jeito de um príncipe se apresentar por aí? O que acontece? Diga aqui pro primão.
— Ah, Jonadabe, minha vida é uma merda… Estou apaixonado por Tamar.
— Sua irmã?
— Meia-irmã, porra. Ela é irmã de Absalão. E eu a quero mais que tudo na vida, mas não sei o que fazer.
— Ah, então tá explicado. Anda se acabando na punheta, aí fica esse farrapo.
— Pois é…
— Precisamos resolver isso, Amnom.
— Não me diga!
— Não seja cínico, estou aqui pra te ajudar. Hum. Olha, cê podia se fingir de doente.
— Como?
— É, cair de cama se fingindo de doente. Do jeito que você está acabado não vai ser difícil.
— Obrigado…
— Ué, mas é verdade! Nunca te vi assim, tá parecendo um fantasma! Mas então: finja-se de doente. Você é filho do rei, paparicado que só a porra, não é? Então! Quando seu pai vier ver como você está, diga a ele: “Pai, eu queria muito que Tamar, minha irmãzinha, viesse aqui cuidar de mim, preparar minha comida”. Ela é sua irmã, oras, seu pai não vai negar um pedido tão inocente.
— E aí…
— E aí, quando ela estiver preparando sua comida você deixa a comida de lado e come a cozinheira.
— A cozinheira? Mas a dona Dita é tão… AH! A cozinheira aí é a Tamar, né?
— Isso, meu asno!
— Mas que beleza de idéia, Jonadabe! Eu jamais pensaria em algo assim.
— Pior é que eu sei disso. E um mané feito você é herdeiro do trono.
— Sou burro mas nasci com sorte. Não tenho culpa.
— Bah.
Empolgado com o plano do primo, Amnom correu para botá-lo em prática. Foi para casa, deitou-se e ficou lá, gemendo baixinho vez em quando, tossindo, reclamando de dores vagas. Logo alguém foi dizer ao rei que seu filho estava doente, e Davi foi visitá-lo.
— Que acontece com você, filho?
— Não sei, pai… É uma… Cof! Cof! Uma dor que sobe assim, e faz assim, tipo desse jeito, sabe? E aí me vem um calafrio, uma tremedeira, um formigamento, um calor.
— Eita! Tudo isso junto?
— É, pai. Tô mal.
— Mas você tem que ficar bom logo, Amnom. Sempre foi um rapaz tão forte, que coisa.
— Eu sei, eu sei. Se ao menos tivesse alguém para cuidar de mim…
— Tá brincando, né? Você é príncipe de Israel, rapaz! Se precisar vem gente desde Dã até Berseba para cuidar de você.
— Ah, pai, mas é tudo assim, só porque eu sou príncipe. Queria ser cuidado por alguém que se importe mesmo comigo.
— Quer que eu chame sua mãe, é isso?
— Não, não precisa. Muita canseira pra mãe, tadinha. Hum. E Tamar?
— Não, até que ela tá bem. Ontem mesmo…
— TAMAR, pai! Minha irmã!
— Ah, Tamar! Eu tinha entendido que… Bom, você sabe. Malditos trocadilhos. Tudo bem, vou falar pra Tamar vir aqui cuidar de você.
— Obrigado, pai.
— O que eu não faço para agradar meus filhotes?
Enquanto Amnom comemorava secretamente o bom andamento do plano, Davi mandou buscar Tamar para cuidar dele. A moça chegou, cumprimentou o irmão acamado e foi preparar bolos e pães para ele. Quando levou a comida até a cama, porém, Amnom não quis comer. Não quis comer bolo, que fique claro: em relação à irmã a fome só aumentava. Ela protestou:
— Mas você precisa comer, Amnom. Está muito fraco.
— Eu sei, eu sei. Mas é que essa gente toda aqui, sei lá. Fico me sentindo constrangido. Você bem podia mandar todo mundo sair, né?
— Tá bom.
Inocente das intenções de Amnom, Tamar pediu a todos que saíssem da casa. Satisfeito, o príncipe pediu que ela lhe levasse a comida até a cama. Quando ela se aproximou, Amnom a agarrou dizendo:
— VEM NI MIM, PRECHECUDA!
Ela, assustada, tentava desvencilhar-se com argumentos:
— Que é isso, Amnom? Não faça isso, por favor!
— Ah, mas faço!
— É loucura, e não é bem visto aqui em Israel, você sabe!
— Sei de nada!
— Você ia ficar desmoralizado, e eu não ia poder aparecer diante dos outros, de vergonha.
— Mimimimimimimi!
— Fale com o rei, Amnom! Tenho certeza que ele me dará a você!
— Mané rei, mané rei! Eu quero é rosetar, minha filha!
Amnom era mais forte, e acabou dominando a irmã. Fez a festa, lambuzou-se. Depois de matar a vontade, porém, olhou para o lado, para aquela mulher miúda e chorosa, e pensou:
— Por que essa criatura não vira uma pizza?
Pegou nojo de Tamar e queria ver-se livre dela. E escolheu o modo mais delicado de fazê-la entender isso:
— Vambora, minha filha. Caminho da roça. Já me servi, agora tenho mais o que fazer.
— Queisso, Amnom? Fazer isso agora é um crime pior ainda.
— Blablablá, foda-se. Cadê meu empregado? Ô, coiso! Tira essa mulher da minha frente, que eu não agüento nem olhar na cara dessa mocréia. Bota ela pra fora e tranca a porta.
O empregado, mesmo sabendo que a moça em questão era filha do rei, obedeceu a ordem. Tamar se viu na rua de madrugada, com seu vestido longo de mangas compridas e muito enfeitado, vestimenta obrigatória para as princesas virgens. Mas ela havia sido deflorada, humilhada, e não se sentia bem com sua bela roupa. Então, em sinal de grande tristeza, jogou cinzas sobre a cabeça, rasgou o vestido e saiu gritando pelas ruas, feito louca, cobrindo o rosto com as mãos.
Absalão dormia em sua casa após uma noite de leve bebedeira. Ouvindo os berros que vinham da rua, pensou “Quem será a puta doida que está gritando a essa hora?”, e saiu para ver. Ficou besta ao ver sua irmã de roupas rasgadas e coberta de cinza, vagando por Jerusalém feito assombração.
— Tamar! Que aconteceu, Tamar?
— O… Amnom… Ele… Ele…
— O Amnom? Ele te fez mal? Foi isso, Tamar? Ele te fez mal?
— F-foi…
— Eu sabia! O jeito que ele olhava pra você, só podia mesmo dar nisso. Mas agora já foi, menina. Fique calma. Ele é seu meio-irmão, o caso também não é pra tanto. Deixa isso pra lá.
Tamar mal podia acreditar no que ouvia. Deixar para lá, simples assim? O irmão mais velho só podia estar doido. Não estava: Amnom tinha sangue de Davi correndo nas veias, e não deixaria isso quieto. Mas para que pressa? A princesa desonrada passou a morar, triste e sozinha, na casa do irmão. O rei soube logo do ocorrido, e ficou furioso. Absalão, no entanto, tratou de acalmá-lo. Não era para tanto, muita calma, muita calma…
Dois anos depois, Absalão foi coordenar a tosquia de suas ovelhas em Baal-Hazor. A tosquia era um trabalho para dias, então Absalão resolveu fazer uma festa para passar o tempo de forma mais agradável. Para isso, foi falar com o rei:
— Pai, vou para Baal-Hazor amanhã, para a tosquia das ovelhas, e vou dar uma festa lá. Queria que o senhor e todo o povo aqui do palácio fossem também.
— Ah, filho, melhor não. Daríamos muito trabalho a você, é muita gente.
— Hum. Lá isso é… Mas, pô, deixa pelo menos o Amnom ir.
— Amnom? Por que ele?
— Ué. Ué. Pô. Sabe como é, pai. O Amnom tem a minha idade e tal. A gente se dá bem.
— Vocês nem se falam!
— Mais um motivo! Para que essa briga besta? Quero fazer as pazes com meu irmão.
— Hum. Sei.
— Pô. Deixa ele ir, pai.
— Tá, vai. Vou falar com ele. Mas se ele não quiser ir, não posso fazer nada.
— Claro, claro.
Quando soube do convite, Amnom aceitou-o de pronto. Não tinha razões para desconfiar de nada: durante dois anos havia se encontrado inúmeras vezes com Absalão, e ele tivera várias oportunidades para vingar a honra da irmã. Não fizera nada, decerto a raiva passara. Então Amnom chamou todos os outros filhos do rei, e foram para Baal-Hazor. Absalão recebeu a todos com sincera alegria, e pediu licença para ir trocar umas palavrinhas com seus empregados. A autoconfiança de Amnom iria por água abaixo se pudesse ouvir as tais palavrinhas:
— Seguinte, macacada. Fiquem de olho em Amnom. Quando ele estiver bem encachaçado, acabem com a raça dele. Não, não, sem veadagem. É pra matar mesmo. Ele é filho do rei? Pois eu também sou, e a responsabilidade é minha. Não sejam uns bundões, façam o que eu mandei.
A festa começou, Amnom encheu a lata e os empregados do irmão trataram de cumprir a ordem. Vendo o que acontecera, os outros filhos do rei interpretaram errado: achando que Absalão pretendia tornar-se sucessor de Davi eliminando a concorrência, montaram em suas mulas e fugiram. Antes que eles chegassem a Jerusalém, no entanto, chegou a notícia. E chegou deturpada: disseram a Davi que Absalão havia assassinado todos os seus filhos.
Imaginem o desespero do rei. Imaginaram? Imaginaram nada! Davi rasgou as roupas, se jogou no chão, todo mundo no palácio fez o mesmo. Uma cena lamentável. Mas logo chegou Jonadabe, o esperto, para dar a notícia correta:
— Tio, não mataram seus filhos não.
— Como não? Acabaram de me dizer que Absalão matou os irmãos!
— Matou nada!
— Tem certeza, Jonadabe?
— Pois eu não estava lá? Claro que tenho certeza.
— Ah, que beleza! Que beleza! Ouviram? Meus filhos estão vivos! Eu sabia que Absalão não seria capaz de uma crueldade assim, meu filhinho querido.
— Er… Tio?
— Que foi, Jonadabe?
— Não é bem assim.
— Como não é bem assim? Meus filhos não estão vivos?
— Estão…
— Então?
— … Menos um.
— HEIN?
— Pois é. Lembra daquela história de Tamar, do que Amnom fez com ela? Pois é…
— Então Absalão matou Amnom? É isso?
— É.
Enquanto eles falavam, uma das sentinelas veio dizer que os príncipes haviam chegado. Traziam a confirmação da notícia dada por Jonadabe: Amnom estava morto. Os filhos do rei vinham tensos, com medo, de repente todos começaram a chorar. Choravam a morte de Amnom, claro, mas também de alívio por terem escapado das mãos de Absalão. Davi não sabia dessa parte, porém, e começou a chorar também pela morte do filho, no que foi acompanhado pelos funcionários do palácio. Por muito tempo ainda Davi lamentaria a morte de Amnom.
Enquanto tudo isso acontecia, Absalão saiu de Baal-Hazor direto para Gesur, onde se abrigou no palácio do rei Talmai, que vinha a ser seu avô materno.

15 comments

  1. Bom!!!
    Só essa passagem valeu o livro todo.
    A boa vingança é assim mesmo: lenta, bem planejada e incontestável. Teve tempo para arquitetar, deixou o desafeto indefeso e despreparado para a surpresa, e, quando fez, todo mundo sabia o porquê. Esse Absalão era bom…

  2. Tamar= Tá mal. A bíblia é um prato cheio para quem quer saber táticas para se pegar mulher (mesmo esta sendo parente sua ou casada) e como se vingar de alguém – da forma mais dolorosa. Foi o maior capítulo que já li, mas valeu cada linha…
    Sim Edgar… A bíblia é o único livro do mundo que abrange todos os estilos literários. Inclusive erótico – ler Cânticos dos Cânticos.

  3. “Vem ni mim, prechecuda!”
    Muwahahahahahahahahahahahahahahaahahahaha
    *perde o fôlego* retoma o fôlego * ahahah ahahahahahahaahahahahahahahahahahahahahah ahahahahahahahahahahahahahaha… ah *ufa!*

  4. Esse cara,deve ser um professor de teologia do bom…
    em poucas palavras resumiu uma estoria antes muito pouco entendida,gostei da linguagem jovem aplicada no relato não tem como não entender,até o trocadilho ficou bacana “tamar,ta mal”
    e o prechecuda então isso foi ilariante e instrutivo.
    bacana mesmo.

  5. Gostei dos relatos dessa istória,tirando os palavrões,mas foi bakna,deu pra entender.Eu só ñ entendi o seguinte.Sabe-se qts anos Tamar tinha qd esse ft aconteceu?Pq li um fato q diz na bíblia q ela tinha 14 anos qd foi concebida em casamento pra um dos filhos de Judá.E aí?Nessa istória aí ela era virgem.

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