Davi e Bate-Seba

(II Samuel 11)
Ah, a primavera! Uma época tão linda! Flores desabrocham, aves preparam seus ninhos, a temperatura é amena, love is in the air. O que fazer em época tão linda? Guerra, é claro! Chegou a primavera e Davi mandou seu exército contra Amom. Joabe e seus homens derrotaram os amonitas e cercaram a cidade de Rabá. Como tudo corria bem, Davi achou melhor dar umas férias a si mesmo e permaneceu em Jerusalém.
Agora imaginem Davi, guerreiro desde a adolescência, confinado na cidade e sabendo que seu exército derramava sangue longe dali: o rei sentia-se entediado às vezes. Num desses dias maçantes ele saiu para andar pelo terraço do palácio depois da sesta. Andava com as mãos entrelaçadas nas costas, e contemplava a cidade que construíra para si. Olhou os detalhes do palácio, a fortaleza das muralhas, a mulher pelada tomando banho, a silhueta das torres de vigia, a…
— Epa! MULHER PELADA TOMANDO BANHO!?
O rei olhou de novo e lá estava ela: alheia a todo o resto, entregava-se ao prazer da água morna e das ervas aromáticas. Sentia-se segura: não era possível que alguém a visse ali, banhando-se no telhado de sua casa. Bom, mas o rei a via, babava por ela, e tratou logo de descobrir quem era a beldade nua. Logo lhe trouxeram a informação: era Bate-Seba, filha de Eliã e casada com um heteu chamado Urias, oficial do exército israelita.
— Hum. — murmurou o rei — Acho que vou comer uma coisinha diferente hoje…
Seus servos entenderam o recado e foram logo buscar a mulher. Bate-Seba não ofereceu muita resistência: o marido estava na guerra há tempo demais, ela se sentia só. Acabara de concluir o ritual mensal de purificação após a menstruação. Além do mais, era o rei quem a chamava! Como declinar? Não tinha jeito! Então ela acompanhou os servos até o palácio — cuidando antes de botar seu melhor vestido e perfumar-se — e lá passou a noite com Davi. O rei ficou feliz da vida: então era assim? Bastava apontar uma mulher e seus servos a trariam sem resistência? Escolher mulher como quem escolhe kiwi na feira? Que beleza, que beleza!
Nem tanto, porém: no mês seguinte Bate-Seba não precisou cumprir seus rituais de purificação, nem no subseqüente. Chegou à conclusão óbvia — estava grávida e, como o marido estava em campanha havia meses, o pai só podia mesmo ser o rei de Israel. A mulher não sabia o que fazer. Confiava, porém, na sabedoria do rei, e mandou um recado a ele falando sobre sua situação.
Aí a porca torceria o rabo, fossem os porcos permitidos em Israel. Davi ficou desnorteado. Grávida, e com o marido fora de casa por tanto tempo, Bate-Seba certamente seria condenada à morte por adultério. Por outro lado, ele não podia assumir o filho: um rei que se aproveita da ausência de um guerreiro para traçar sua mulher não seria figura muito respeitada (estamos falando de Israel, não se esqueçam, não do Brasil, onde a canalhice é louvada e estimulada). O rei pensou, pensou, e achou ter chegado à melhor solução possível. Pegou um pergaminho e rabiscou uma mensagem para Joabe:

Joabe,
Mande Urias, o heteu, aqui para Jerusalém. Tenho que falar com ele.
D.

Joabe estranhou o pedido do rei. Mas era leal como um cão e não fazia perguntas: chamou Urias, falou da mensagem do rei e o mandou para a capital.
O pobre heteu passou todo o tempo de viagem pensando no que levara o rei a chamá-lo assim, tão fora de propósito. Recapitulava seus atos nesta e noutras campanhas, tentava lembrar-se de alguma falta que pudesse ter cometido. Era homem corretíssimo, porém, e não conseguia se lembrar de nada porque nada havia. Isso o martirizava mais ainda: o que poderia querer com ele o rei? Chegando a Jerusalém, foi surpreendido por um simpático Davi:
— Urias, como vai você, rapaz?
— Er… Bem, majestade. Bem.
— Mas deixe desse negócio de majestade, que bobagem! Me diz, como é que tá o negócio lá com os amonitas?
— Tudo sob controle, majestade. Demos uma surra nos amonitas, e agora estamos sitiando a cidade de Rabá. O general Joabe diz que eles não têm como resistir por muito tempo, porque o fornecimento de víveres foi…
— Maravilha, maravilha! Muito obrigado por ter vindo tão rápido, Urias. Agora vá para casa descansar um pouco, reveja sua mulher, passe a noite com ela. Pode voltar para Rabá amanhã.
— O-obrigado, majestade.
— Eu é que agradeço, Urias!
O heteu saiu do palácio, e Davi sentiu o peso sair de cima de seus ombros. Bastava que Urias fosse para casa aquela noite. Estava em guerra havia meses, cercado por homens o tempo todo, sentindo saudade de casa, onde uma mulher linda o esperava. A natureza seguiria seu curso, os dois teriam uma noite animada, e quando a criança nascesse ninguém teria porque desconfiar de adultério: lembrar-se-iam do dia em que Urias viera a Jerusalém a pedido do rei, e estaria tudo certo.
Feliz com sua idéia engenhosa, Davi subiu para o terraço para tomar um pouco de ar e contemplar novamente suas obras grandiosas. Estava nisso, congratulando-se e rindo sozinho, quando um de seus servos de confiança apareceu no terraço:
— Majestade, o heteu não foi pra casa.
— Como não foi?!
— Não foi, ué. Tá dormindo nas portas do palácio, junto com os guardas.
— Ah, só me faltava essa! O cara pegou gosto nesse negócio de dormir com barbado. Amanhã logo cedo eu quero ter uma palavrinha com esse Urias.
— Sim senhor.
Estava arruinado o flanar pelo terraço. O que aquele heteu pensava da vida? Então tinha um dia inteiro de folga e resolvia usufruí-lo de que forma? Dormindo com os guardas! Mas isso seria esclarecido no dia seguinte, quando Urias recebeu o recado do rei, lavou o rosto e subiu para a sala do trono. O rei se apresentou menos simpático dessa vez:
— Urias, qualé a sua? Você é descendente de sodomita, por acaso?
— Impossível, majestade. As relações que os sodomitas mantinham eram daquele tipo que não gera filhos, se é que o senhor me entende…
— Oras, não se faça de burro! Eu tô perguntando se você é bicha!
— Bicha? Claro que não, majestade, longe de mim! Sou casado com uma mulher linda, carinhosa.
— POIS É! E, tendo um dia de folga depois de tanto tempo na guerra, aproveitou para ir dormir com ela, quentinho? Não! Foi dormir com os guardas no portão! Por que, Urias, por quê?
— Majestade… Os homens de Israel estão longe, na frente de batalha. A Arca do Acordo está lá numa tenda, e Joabe e os outros comandantes dormem ao relento. Como é que eu ia ter coragem de ir pra minha casa, comer, beber, deitar com minha mulher? Não seria certo, majestade! Eu nunca poderia fazer algo assim.
— Eu sei, Urias. Você é um homem muito correto.
— Obrigado, majestade.
— Tão correto, mas TÃO CORRETO que chega a ser CHATO PRA CARALHO.
— Sinto muito, majestade.
— Saco… Olha, você vai ficar por aqui hoje. Amanhã eu o mando de volta para Rabá.
— Como quiser, meu senhor.
— E vai jantar comigo hoje.
— Muito me honra.
— Tá, tá!
Durante o jantar, Davi não deixou que o copo de Urias ficasse vazio nem por um momento. O rei pensava que, bêbado, o soldado perderia um pouco daquela pose certinha, e perceberia enfim que tinha um belo de um pé-de-rabo esperando por ele em casa. Resolveria sua vida, a da mulher e a do rei. Mas qual o quê! Mesmo cheio de álcool nos cornos, o corno do heteu foi dormir novamente com os guardas. Davi desistiu: dera ao chifrudo duas oportunidades. Ele não quisera aproveitá-las; paciência. Na manhã seguinte, mandou chamar Urias pela última vez.
— Urias, pode voltar para Rabá.
— Ah, que beleza, majestade! Estou ansioso por isso!
— Ansioso pelo cheiro de cueca, né, safadão? Humpf. Bom, volte para lá imediatamente, e leve esta mensagem a Joabe.
— Sim senhor.
Urias despediu-se, e tomou o caminho de volta para Rabá. Ia feliz: partilhara da mesa do rei, e este lhe confiava uma mensagem para seu general. Além do mais, sua majestade demonstrara real preocupação com ele, instando para que descansasse em sua própria casa. Sim, o heteu estava muito feliz. Homem impoluto que era, em momento algum pensara em dar uma espiada na carta que levava enrolada nas mãos, presa por um barbante e com o selo real. Caso o fizesse, daria um jeito de desviar seu caminho e nunca mais aparecer em Rabá nem em Israel. Porque a mensagem de Davi para Joabe era breve e clara:

Joabe,
Urias deve ser posicionado bem na linha de frente, onde a luta estiver mais cruenta. Quando ele estiver no lugar certo, retire-se com seus homens e deixe que ele seja morto.
D.

Ah, que bela atitude! Digna de um rei, não há dúvida! Até o carniceiro Joabe engoliu em seco ao ler a ordem. Deveria, pois, mandar um de seus homens para a morte, sem razão aparente? Era demais até para seus parcos escrúpulos morais. Mas havia a lealdade ao rei: se Davi ordenara, que se fizesse. Então o general observou bem a cidade, e enviou Urias para um lugar onde sabia que o exército inimigo era mais forte. As tropas inimigas saíram da cidade para enfrentar o exército de Joabe. Sua lealdade parava por aí: Joabe era um guerreiro e um comandante, não ia retirar-se só para satisfazer um capricho de seu rei. Então fez frente ao ataque, e alguns de seus oficiais foram mortos na desnecessária batalha. Entre os mortos estava Urias, conforme o planejado.
Com sua abjeta missão cumprida, Joabe mandou um mensageiro a Davi para que contasse sobre o resultado da batalha. Deu instruções precisas:
— Rapaz, o rei provavelmente vai ficar bravo com essa história. Mas se ele perguntar porque chegamos tão perto da cidade, e disser dos perigos que corríamos e coisa e tal, não se preocupe. Ele provavelmente vai lembrar a velha história de Abimeleque, que foi morto por uma mulher que atirou uma pedra de moinho de cima dos muros da cidade enquanto ele a sitiava. O rei adora essa história, sempre nos fala dela para dizer que não devemos chegar muito perto da muralha. Enfim: se ele perguntar por que chegamos tão perto da muralha, você apenas diz que o oficial Urias foi morto.
O mensageiro acatou as ordens e correu para Jerusalém. Não quis, no entanto, correr o risco de provocar a ira do rei, então contou a história assim:
— Majestade, os inimigos eram mais fortes e saíram da cidade para lutar em campo aberto. Nosso exército até conseguiu forçá-los a voltar para cidade, mas aí chegamos muito perto da muralha e eles começaram a atirar flechas lá de cima. Alguns dos oficiais foram mortos, inclusive o heteu Urias.
O rei conteve um risinho de vitória:
— Hum. Olha, anime o Joabe, ele deve ter ficado abatido com isso. Diga a ele que não fique preocupado, que numa batalha a gente nunca sabe quem vai morrer. Nunca sabe… Mas diga ao general que ele está fazendo um excelente trabalho, e que continue atacando com força até conquistar a cidade.
— Sim, majestade.
O mensageiro voltou para Rabá, mas antes deu a notícia a Bate-Seba. A viúva chorou lágrimas sinceras pelo marido que, afinal de contas, amava. Quando passou o período de luto, Davi mandou chamá-la e a incorporou a seu harém. Meses depois nascia o menino.
Tudo ficaria bem, fosse Israel uma monarquia absoluta. Não era: acima do rei pairava a única autoridade inconteste sobre os filhos de Abraão. O que Davi fizera a Urias ultrapassava todos os limites da vilania, mesmo dentro dos parâmetros de Javé. E ele não tardaria a demonstrar que não gostara nada daquela covardia.

10 comments

  1. Olá, Bate-Punha!
    Linda história. Daria um ótimo momento sessão da tarde.
    Obs: Perdi todo direit od reclamar sobre atualizações. Quase uma semana sem visitar o blog, estou em dívida.
    Beijundas!

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