Viagem ao passado – Parte II

No mesmo dia da peregrinação pelos lugares sagrados de Santana, peguei o ônibus para voltar para casa e encontrei uma velha amiga.
— Renata!
— Marco Aurélio!
— Há quanto tempo!
— Pois é!
Às quatro exclamações que iniciam a conversa de dois velhos conhecidos desde que o mundo é mundo seguiu-se uma conversa bastante agradável sobre os velhos tempos. Velhos mesmo.
Minha história com Renata começou quando ambos tínhamos sete anos de idade, e da pior forma possível: cansada de minha tagarelice (eu sou um sujeito calado, mas uma vez que começo a falar não paro nunca mais), ela empurrou sua carteira, espremendo minha mão contra o encosto da cadeira em que estava sentado. Doeu muito, mas desde antes daquela época eu já procurava seguir a regra de nunca chorar na frente de uma mulher, haja o que houver. Então apenas engoli o choro, peguei minha tesourinha e picotei a linda toalha de plástico com que a caprichosa Renata cobria sua carteira. Ela abriu um berreiro surpreendentemente alto. Assustado, e sabendo que se não fizesse nada acabaria como único castigado, comecei a chorar mais alto que ela. A professora nem quis saber do que se tratava: botou os dois para fora da sala. Sozinhos no corredor era constrangedor demais continuar chorando, então ficamos calados e de cabeça baixa. A professora abriu a porta e nos deixou voltar, sem uma palavra. Sábia Dona Juraci.
Depois disso estudamos em salas e horários diferentes durante alguns anos. Voltamos a nos encontrar na quinta série, e foi aí que a porca, como se diz, torceu o rabo: Renata estava linda. Os cabelos lisos e pretos caíam até o meio das costas. A pele muito branca, em contraste com as sardas, destacavam a beleza de seu rosto. O porte altivo fazia a gente pensar num animal selvagem despreocupado. Desnecessário dizer que me apaixonei furiosamente. Olhando para ela agora, quase vinte anos depois, ainda conseguia ver um pouco da menina que ela fora. Os cabelos estavam mais claros, mas ainda compridos e lisos. As sardas continuavam salpicando o rosto.
— Tá vindo do trabalho?
— Nah, parei com esse negócio de trabalhar. Me aposentei.
— Como???
— Trabalhei mais de dez anos com esse negócio de informática e coisa e tal. Agora encasquetei que quero ser… Ah, você vai rir da minha cara.
— Fala, oras.
— Quero ser escritor.
— Que bom! Finalmente, né? Você sempre escreveu tão bem.
— É? Não me lembro disso não. Lembro que era bom em matemática, mas não de escrever.
— Ah, Marco Aurélio, faça-me o favor! Não era você que até lia dicionário?
— PUTA QUE PARIU! — todos os olhos se voltaram para mim nessa hora, então baixei um pouco o tom — Achei que ninguém mais lembrasse disso.
— Como é que a gente esquece um negócio desses?
— É verdade… Mas e você, anda fazendo o quê?
— Tô trabalhando numa escola.
— Merendeira?
— ¬¬
— FALA!
— Professora de Educação Física.
— Ah, que legal! Sua cara!
— É???
— Claro! Você era a aluna mais elegante nas aulas de Educação Física.
— Elegante?
— É. Os cabelos presos num rabo-de-cavalo, a camiseta branquíssima arrumadinha por dentro da calça Adidas, os tênis também muito brancos. E você corria, jogava vôlei e handebol, e nunca suava. No máximo reluzia um pouco.
— Nossa! Você lembra de muita coisa…
— Eu observei você por muito tempo naquela época.
— É, eu lembro.
Não foi muito tempo, na verdade. Dois anos, pouco mais ou menos do que isso. Mas eu me lembro que então um ano era um tempo longuíssimo. Hoje os anos se acumulam um sobre os outros e eu não consigo acompanhar sua velocidade cada vez maior.
— E tem visto alguém daquele pessoal? — outra frase-chave para tais encontros. “Aquele pessoal” nesse caso era um termo vago para definir um grupo que inclui eventualmente todo mundo que estudou na Escola Municipal de Primeiro Grau “Amadeu Amaral” (Entra burro, sai animal) de 1982 a 1989.
— Ah, faz tempo que não vejo ninguém. Encontrei a Moniquinha há uns tempos, lembra?
— Sim. Fui apaixonado por ela logo depois de… Bom, você sabe.
— É, é verdade. Então, tá casada.
— Coitado do indivíduo que desposou aquela maluca.
— Hehehehe, concordo. Não sei o que você viu nela.
— Eu tinha catorze anos, Renata. Pega leve.
— Tá, vai.
— E você?
— Eu o quê?
— Casou?
— Eu não. E você?
— Também não. Mas por motivos ideológicos.
— Como assim?
— Sou contra casamento, noivado, namoro, compromisso, essas coisas.
— E é a favor de quê?
— Putaria, ué.
— Bela ideologia… Ah, lembrei! Encontrei o Alexandre dia desses. Parece que ele e a Lilian montaram uma agência de turismo.
— Porra, saudade danada daqueles dois! Houve uma época em que eu os encontrava sempre no metrô. Nunca mais. Eles se mudaram daqui?
— Parece que sim.
Alexandre foi meu melhor amigo entre os onze e os catorze anos. Quando tínhamos treze, ele veio me fazer uma confidência:
— Cara, tô apaixonado pela Renata.
Eu tive que me segurar para não falar um “Eu também, caralho”. Em vez disso falei “Puxa, que coisa” e mudei de assunto. Dias depois ele veio falar comigo novamente. Estava um caco.
— Fui falar com ela, Marco.
— Com ela?
— A Renata, porra!
— Ah. Sim. Ela. E aí?
— Ela me deu o fora, cara. Pô.
Era visível que ele se continha para não chorar. Naquele momento em que vi meu amigo sofrendo tanto, Renata evaporou-se de minha mente como que por magia. Ela podia me fazer sofrer o quanto quisesse. Mas fazer o mesmo com o Alexandre era um pouco demais.
— Olha, a gente pegou na conversa e eu quase que passo do ponto.
— Nós já passamos do ponto faz tempo, Renata.
— Ah! Marco Aurélio, o Melancólico. Não muda, né?
— Que graça teria?
— Nenhuma.
Ela apertou a campainha do ônibus, e antes de ir para a porta de trás, encerrou a conversa conforme a regra:
— Precisamos nos ver mais.
— Claro.
Claro. E é claro que não trocamos números de telefone, endereços de e-mail nem nada. Eu sei onde ela mora, ela sabe onde eu moro. Mas não vamos nos visitar. Certas histórias devem permanecer no passado.

15 comments

  1. Sim, algumas histórias devem pertencer ao passado; mas às vezes é necessário dar um “update” nelas.
    Eu não me arrependo de ter dado um update numa história assim! 😉
    Abraço!

  2. Mas quando ocorrem reencontros, talvez seja necessário retomar algumas histórias de onde elas pararam… e quanto a não trocar telefones e tal, não se preocupe… com certeza ela já conhece o JMC. Até minha mãe conhece.

  3. Que curioso. Também tenho memórias em Santana…Voluntários da pátria.Passava por lá quando trabalhava de office boy, aos 16 anos, no já distante 1996!

  4. essa é uma verdade a gente fica relembrando as histórias do passado sentindo saudades daquele tempo e quando encontra alguém nem troca o numero do telefone, isso aconteceu comigo na exposição do Picasso encontrei um amigo do tempo da escola e nem o numero do telefone dele eu peguei mas como vc falou “certas histórias devem pemanecer no passado”

  5. Acho que todo mundo tem alguma história parecida no passado.
    Para seu crédito, esse texto trouxe lágrimas aos meus olhos (coisa MUITO rara). E não foram de desgosto, asco, ou qualquer coisa que poderia ser considerada um insulto, ok?
    Só uma ressalva: pegue o telefone dela, PORRA!

  6. Por que alguém iria rir da sua cara? Por que “quero ser escritor”?
    Minha opinião não vale grande coisa, por isso vou transcrever suas palavras: veja o que as pessoas publicam por aí, agora leia seus textos. Leia esse texto sem o envolvimento de ter sido você o protagonista.
    Vãos receios, você é um escritor e nem precisa ser, quando crescer.

  7. Pô Marcurélio !!!
    Vc me fez viajar no tempo com seu texto… Lembrei de minhas paixões antigas de escola, dos foras que algumas dessas garotas me deram, dos amigos que o tempo levou, da boa e velha EMPG Tte. José Maria Pinto Duarte…
    Bons tempos !!!
    Só posso agradecê-lo pelo texto postado, e torcer para que vc continue encontrando as pessoas que lhe são caras. E não deixe “certas histórias para o passado”, pq pode ser que agora elas se tornem melhores ainda !!!
    Abração !!!

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