Dogville

Tempos atrás, pensei em escrever sobre minha relação com as artes. Nesse texto, eu diria que a única forma de arte que conseguiu me atrair até hoje foi a literatura, e que só consigo apreciar o cinema, o teatro e a música como manifestações literárias (com a música essa relação suavizou-se um pouco quando eu comecei a tocar violão). O Polzonoff, aliás, escreveu algo assim sobre cinema um dia desses.
Ainda bem que não escrevi. Porque ontem eu fui assistir Dogville, e fui surpreendido pelo que eu achava ser a minha forma de ver o cinema: apenas literatura filmada. Como é de meu costume, fui ao cinema sem antes ler nada sobre o filme. Se soubesse que era de Lars Von Trier, um dos mentores do movimento dinamarquês Dogma, eu provavelmente não iria. Se soubesse, por outro lado, que a protagonista era Nicole Kidman, talvez fosse com entusiasmo demais. Fui sem saber nada, o que contribuiu muito para minha total estupefação. O primeiro susto eu levei quando o filme começou: nada de cenário, nada de árvores, nada de nada. A cidadezinha é desenhada com giz no chão de um galpão. Os arbustos e até o cachorro são desenhados com giz. Há um narrador que fala quase o tempo todo, deixando espaço apenas para os diálogos. Os diálogos, por sua vez, não contêm nada de supérfluo: cada palavra é preciosa, como nos romances.
Rubens Ewald Filho (não leiam a crítica, ele entrega logo de cara quem é o gângster que persegue a moça) diz que o filme é teatro filmado. Outros devem pensar o mesmo. Eu não chegaria a isso: Dogville situa-se em algum ponto entre a literatura e o teatro. A ausência de todo o resto serve para que a platéia se concentre no que é essencial: trama e personagens. O resto é um exercício de imaginação, como nos livros. Mas o Ewald acerta numa coisa: depois de um tempo assistindo ao filme, a gente se esquece da estilização total do filme, tão boa é a história, e tamanha a qualidade dos atores.
Não leio jornais nem revistas, mas estou certo de que até agora muitas daquelas bichas velhas que grassam nos cadernos culturais já escreveram maravilhas, deslumbradas com “a crítica feroz aos EUA”, ou “a análise da hipocrisia ianque”, ou qualquer outra besteira assim. Não vi nada disso no filme (talvez por causa de minha cada vez maior leviandade). Vi apenas uma história assustadora muito bem contada, em que a ausência de paredes faz com que Dogville se apresente a nós como St. Mary Mead devia mostrar-se a Miss Jane Marple, a velhinha detetive de Agatha Christie: sem segredos, o que torna o filme ainda mais terrível.
Vou recomendar Dogville a vocês, mas já adianto que pouca gente vai gostar: são três horas de um filme que não conta nem com o que há de mais rudimentar na arte cinematográfica. Para mim, pelo menos, serviu para eu confirmar que o que me atrai em qualquer forma de arte é, definitivamente, a literatura. Melhor filme do ano até agora.

24 comments

  1. eu vi e nao sei se gostei exatamente pelos mesmos motivos que você disse que gostou: é literatura filmada. Na minha opinião, se vc fechar os olhos durante dogville, consiguirá entender toda história. Logo, o cinema, enquanto arte primariamente visual, é o suporte errado para obra do Lars Von Presunçoso. Dogville, como foi concebido, caberia bem melhor num livro. Ou numa radio novela…

  2. Permita-me discordar, ó Senhor dos Exércitos: estou certo de que a mera leitura do roteiro já seria fascinante, mas a atuação do elenco é sensacional, e justifica o fato de o livro ter virado filme (mesmo sem nunca ter sido um livro. Bah, você entendeu).

  3. Eu gostei do filme pela novidade (nunca tinha visto esse recurso de “teatro filmado” antes). E o argumento da arrogância me atingiu como uma jamanta na contramão. Admita que você também não via o Tom como o personagem principal que salvaria a trama.

  4. Nada de teatro filmado. O negócio é cinema mesmo. A atuação não é nada rasgada e exagerada como a teatral. Em alguns momentos, fiquei entediada. Não gostei da divisão por capítulos, assusta um pouco. O cara diz que tem 9 capítulos e quando acaba o primeiro, você pensa: putaquepariu, ainda têm mais 8!!! Não vou agüentar. Mas você vai agüentando e passa a gostar. O final foi maravilhoso, eu também sou doente. Eu faria pior! huahuahauhauhauah!
    Beijos,

  5. Minha amiga ssistiu em Brasília e falou o mesmo que você. Estou doida pra ver esse filme só que não entra em cartaz aqui em Ribeirão! Que bosta!

  6. Ah, eu senti forte critica aos Estados Unidos, sim. Aliás, o filme é o primeiro de uma trilogia sobre os EUA. Esse enfocava a violência, claramente… E ele é bem mais que teatro filmado, definitivamente. Os recursos de cinegrafia utilizados são geniais, sutis, mas geniais…

  7. Até que enfim, mais um que gostou!!! Não acho que seja só sobre os EUA, mas como eles são a bola da vez…
    Pra quem ainda não assistiu, recomendo assistir rápido. Principalmente se morar nesse fim de mundo que é Belo Horizonte…

  8. Marco, sobre o lance da “crítica feroz aos EUA”, acho que ela existe sim. O Von Trier diz pra todo mundo que nunca visitou o país e que poderia criticá-lo mesmo assim. Eu vejo o filme todo como uma provocação do cara, e o acho bastante engraçado (eu gargalhava quando o “cachorro” latia, hehe). Mas, posso fazer uma recomendação? Tem outro filme dele, chamado ONDAS DO DESTINO (com a Emily Watson) que é excelente também, mas mais convencional. Entra na categoria “filmes que me fizeram chorar”. Acho que a história vai te agradar, tenta dar uma olhada. 😛

  9. Quem quer ler um livro, geralmente procura uma biblioteca/livraria e não um cinema, pois a imagem que você vê, seja ela precária ou não, e querendo você ou não, inibe a imaginação que você teria se estivesse lendo um livro! Quem vai no cinema, sempre tem a expectativa de observar, além de uma boa performance dos atores, uma boa representação da realidade da época através do cenário, figurino etc. Se o que importa é somente o diálogo, a história poderia ter sido veiculada na rádio! Se a idéia era também trabalhar um pouco a visão, mostrando a beleza da jovem fugitiva em contraste com a pobreza do local e a carência de beleza dos seus habitantes, ressaltando acima de tudo a história e os diálogos, o teatro seria o veículo de comunicação ideal.
    O filme é demorado, muito mal feito (não digo só em relação ao cenário, mas até mesmo na edição, tem hora que vc a Nicole falando sentada e no instante seguinte ela deitada numa posição na qual não poderia estar, pelo menos não em fração de segundos, ou seja, o diálogo foi gravado mais de uma vez e se preocuparam em somente pegar o “melhor” discurso da personagem, sem a minína preocupação com as regras físicas de tempo e espaço – notei isso pelo menos duas vezes – coisa que não aconteceria no teatro)!
    A história somente fica boa no final, mas infelizmente, convenhamos, a mensagem que o filme transmite é tão péssima quanto sua produção…

  10. Eu, uma fariséia… hehehe Quem diria!? Dogville é ótimo e concordo com você: fica em algum ponto entre a literatura e o teatro; a história é tão boa que esquecemos do tal cenário/teatro riscado a giz. Mas…. tem uma criticazinha sim aos EUA.. mas nada que desvie a pessoa do centro, das personagens, dos trejeitos, enfim. Lars Vont Trier é expert nisso. Bem que tentei analisar, analisar e analisar no “puttanesca” mas fazia um tempo que um filme não me incendiava tanto!
    Bisous, gigi

  11. O fariseu acima de mim tem toda razão quanto ao significado do cinema. Vero. Você, “jesus” disse que se alguém tivesse dito o diretor, você não iria.. e no caso, Nicole Kidman, te deixaria mais cheio de expectativas. Engraçado, comigo é o contrário. Ela não me apetece.. Estamos quites no tocante a ir ao cinema sem a mais vaga idéia do que se trata a película. Voltando ao “fariseu” de cima: A atriz mudava de posição rapidamente porque estes são os preceitos do movimento criado em 1995 – o DOGMA. Fica feio? Talvez. Chato? Pode ser. Mas isso não é erro. O diretor “apequenou” Dogville de propósito para que pudéssemos enxergar as nuances das personagens, da trama. O filme é extremamente poético, coisa difícil de encontrar hoje. E a metáfora do “cachorro”? E a corrente indicando os melindres “Sado-masô” das sociedades primeiro-mundistas especialmente? Ninguém vê isso. Não basta ver detalhes técnicos.. Basta enxergar o FILME como um todo.

  12. e….. DICTUM AC FACTUM – alguma coisa nas “minas de Grace”. O filme é ótimo e muito complexo para passar mensagenzinhas. A macharada não deve ter gostado; deve ser isso. Claro que não é a poesia forte de um Pasolini, mas Lars Vont Trier faz muito bem seu papel como diretor de cinema contemporâneo. O tempo é algo importantíssimo no cinema, mas a divisão em capítulos foi a escolha certa e ele não ultrapassou o limite. Tudo se encaixava perfeitamente. Matrix todo mundo atura, né?
    E DICTUM AC FACTUM. voilà.

  13. Concordo. Vi aqui no Bristol. Passei mal de dar risada no final. So dava eu gargalhando. O final melhorou muito o filme. Tambem recomendei a todos e com a mesma ressalva: vcs podem nao gostar.

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