O levita e sua concubina — Uma tragédia

(Juízes 19)

Terminada a história de Mica, com o episódio lá com os danitas, o livro dos Juízes muda de assunto mais uma vez, passando para uma história que não guarda relação alguma com a anterior, a não ser pela presença de um levita que viaja entre a região montanhosa de Efraim e a cidade de Belém, em Judá.
O levita dessa história morava em Efraim, e arrumou uma concubina lá de Belém. Acontece, porém, que a mulher botou-lhe um reluzente par de chifres na testa, os dois brigaram e ela voltou para a casa da mamãe. Quatro meses depois, já recuperado do golpe (eram chifres de leite, caíram logo), ele mandou que um empregado preparasse dois jumentos e pegou a estrada para Belém, disposto a convencer a amante a voltar para casa. Quando chegou, o pai da moça ficou muito feliz em vê-lo.
— Rapaz, mas que surpresa! Que bom que você veio!
— Hum. Estou muito feliz de ver o senhor também…
— Sim, sim, que maravilha! Veio buscar minha filha, foi?
— Sim senhor.
— Que bom, rapaz, que ótimo! Ainda bem que você não se deixa abalar por pouca coisa.
— Pois é!
— Tem gente que não consegue suportar traição de jeito nenhum.
— Hum… É.
— Mas você não! Você levou um belo par de chifres e nem ligou!
— Bom, não é bem as…
— NEM LIGOU! Corno ou não, deixou que o coração falasse mais alto.
— É que sua fi…
— Que coisa mais bonita de se ver, um chifrudo apaixonado! É de encher os olhos de lágrimas!
— Olha, eu acho que o senhor não…
— Tá certo, rapaz, certíssimo! Esse negócio de chifre é só uma coisa que botam na sua cabeça…
— AH, NÃO! EU POSSO SUPORTAR TUDO, MENOS PIADA VELHA! CADÊ MINHA MULHER? VIM BUSCÁ-LA, VAMOS EMBORA AGORA MESMO.
— Calma, rapaz, calma. Nunca vi você nervoso assim, foi sempre tão manso…
— EI!
— Hehehehe. Brincadeira, pô. Cadê seu senso de humor? A verdade é que estou muito feliz em revê-lo. E não vou deixar que vá embora não: durma aqui pelo menos uns dois dias.
O levita, acalmando-se aos poucos, aceitou a oferta do sogro. O casal reconciliou-se, e ele ficou lá por três dias. Ao quarto dia, os dois levantaram-se prontos para a viagem, mas o pai da moça não aceitou:
— Que é isso, rapaz? Agora vocês vão lá para Efraim, e quando é que eu vou ver minha filha de novo? Só se ela pular a cerca de n… Er… Então. Mas não tenha pressa! Fique aí, coma alguma coisa pelo menos, para não viajar com fome.
Eles ficaram, comeram, beberam, conversaram, contaram causos e, quando preparavam-se para partir, notaram que já começava a anoitecer.
— Mas de jeito nenhum que eu vou deixar vocês viajarem à noite! Vão dormir aqui, amanhã vocês vão.
— Agradeço muito a sua hospitalidade, mas precisamos mesmo ir.
— E atravessar o deserto à noite? Não, muito perigoso. Fiquem aí.
— Hum… Tá bom, vai.
O casal dormiu mais uma noite ali, e no dia seguinte prepararam-se (de novo) para a viagem. O velho ainda tentou detê-los por mais tempo, mas dessa vez o levita foi firme. Saíram, então, e andaram até o fim da tarde. Quase anoitecia quando chegaram à cidade de Jebus, futura Jerusalém, e o empregado sugeriu:
— Chefe, acho que a gente podia passar a noite ali na cidade.
— Ah, não sei… Ficar hospedado aí com os jebuseus, não confio nessa gente. Vamos andar mais um pouco, aí dormiremos em Gibeá ou Ramá, que pelo menos são habitadas por israelitas.
Então eles passaram direto por Jebus, e chegaram a Gibeá quando já era noite. Entraram na cidade e sentaram-se na praça. Depois de horas ali, sem que ninguém sequer lhes dirigisse a palavra, um velho que voltava do trabalho na roça foi falar com o levita.
— De onde você vem, rapaz?
— Da cidade de Belém, em Judá. Fui buscar minha mulher lá, e agora estou voltando para minha casa, em Efraim.
— Hum… Que lugar de Efraim?
— Ali nas montanhas.
— Pô, você é meu conterrâneo! Seguinte: vocês vão ficar lá em casa.
— Não precisa não, senhor! Temos comida e água aqui, e palha para os jumentos. Estamos bem, sério mesmo.
— E eu lá vou deixar um efraimita dormir na praça pensando neeeeeeeela? De jeito nenhum! Você, sua mulher e seu empregado serão meus hóspedes.
— Bom, já que o senhor faz tanta questão…
— É isso aí!
Os três acompanharam o velho até sua casa. Depois de darem comida aos jumentos, entraram, lavaram-se, comeram e beberam bastante. Estavam conversando e rindo alto quando ouviram batidas na porta.
— VOVÔ-Ô! VOVOZI-NHÔ! CADÊ O MOÇO QUE ESTAVA COM VOCÊEEE?
— Ih caralho…
— Quem está batendo à porta?
— Essa bicharada dos infernos. São uma praga aqui em Gibeá. VÃO EMBORA, MONAS! O MOÇO É MEU, SÓ ME-EU!
— Ei, peraí…
— Nah, é só pra assustar.
— BICHA VELHAAAAAAA! SE VOCÊ NÃO TROUXER O MOÇO AQUI, A GENTE ARROMBA A PORTA!
— VÃO ARROMBAR SEUS CUS, FILHOS-DA-PUTA!
— MAIS???
— Ah, que saco… EU TENHO UMA FILHA VIRGEM, E O MOÇO AQUI ESTÁ COM A AMANTE DELE! VOU MANDAR AS DUAS PARA VOCÊS SE DIVERTIREM, MAS DEIXEM MEU HÓSPEDE EM PAZ!
— AI, CREDO! TEM CORAGEM DE OFERECER RACHA PRA GENTE???
As bichas começaram a se revoltar. O levita, cagando de medo, jogou sua concubina pra fora, trancando a porta em seguida dentro da casa. Os rapazes, vendo que não conseguiriam nada melhor que aquilo mesmo, deram de ombros e abusaram da moça a noite toda, deixando-a em paz só quando o dia amanheceu. Ela veio se arrastando e ficou caída na entrada da casa. Quando o levita acordou — devia ter passado a noite com o veado velho —, viu-a ali prostrada e, numa demonstração de amor impressionante, disse:
— Ô. Levanta.
A mulher, porém, não respondeu: estava morta. Ele então pegou o corpo, ajeitou-o sobre um dos jumentos e seguiu sua viagem carregando a defunta. Quando chegou em casa, pegou uma faca e cortou o corpo da mulher em doze pedaços. Depois disso, enviou os pedaços para cada uma das doze tribos. O fato escandalizou o país, e em todo canto havia só um assunto: o levita que enlouquecido pela morte da mulher que amava, e pela qual empreendera uma longa e perigosa viagem. A história não era bem assim, como vimos, mas essa foi a versão que pegou. Um clima de vingança e ódio contra os habitantes de Gibeá começou a tomar conta de Israel. O que aconteceu? Veremos nos próximos capítulos.

Quem acompanha isto aqui desde os primórdios (e quem conhece um pouco de Bíblia também, claro) deve ter notado a semelhança dessa história com aquilo que aconteceu na casa de Lot, em Sodoma (aqui). Só que naquela ocasião os hóspedes eram anjos, e livraram-se mais facilmente.

12 comments

  1. Lindinho, vc seria um pastor perfeito. Sabedoria, má fé e cinismo. A senda do mistério… Amizade hetero?? Sim, existe!! Meus 4 melhores amigos são gays. Um deles conheci aos 12 anos.19 anos de amorrrrrrrrrrrr!!!
    Kiss, Cris

  2. Mas que horror esse história. Imagina se tivesse o Extra ou o Agora naquela época, ia ser uma festa!
    Que coisas bizarras podem existir em um livro religioso…

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