Andróides

Lendo este post do Instante Anterior, lembrei-me da vez em que presenciei (ou quase isso) uma mulher sendo atirada aos trilhos do metrô (post aqui). As reações das pessoas que estavam na plataforma variavam: umas ficaram indiferentes, outras impacientes (“Ah não, vou chegar tarde em casa!”), outras ainda curiosas (houve quem se deitasse de bruços na plataforma tentando ver a mulher sob o trem). Porém, assim como no caso descrito pelo Bruno Medina no post dele, também no metrô pouca gente pareceu importar-se com o mais importante: um ser humano — o semelhante, o próximo — provavelmente acabara de sofrer uma morte horrível. Bruno assim diagnostica tal insensibilidade generalizada:

Hoje em dia estamos tão acostumados a bisbilhotar a vida alheia pela tela da tv que tudo parece novela; o menino que passa fome, a senhora que foi atropelada pelo ônibus ou alguém que perdeu a casa num incêndio. A vida real é ficção.

Concordo que tais fatores contribuam para piorar o problema, mas não são sua causa: pelo que percebo da Literatura e da História, pessoas insensíveis ao sofrimento alheio sempre foram regra, não exceção. Talvez Darwin tenha alguma explicação para isso, algo relacionado à garantia do bem-estar do indivíduo a curto prazo, sei lá. O fato é que pessoas que se sensibilizam com o que acontece aos outros (e a princípio não as afeta) são uma minoria horrorizada diante da monstruosidade de seus pares.
Pensar nisso me fez lembrar de uma passagem do livro Blade Runner, de Philip K. Dick (não sei se foi transposta para o filme), em que o caçador de andróides faz um teste padrão para discernimento entre seres humanos e cibernéticos. Li esse livro no tempo em que Satanás era criança, então não me lembro de detalhes. Sei que o teste era uma espécie de psicotécnico com auxílio de um aparelho parecido com um detector de mentiras. Só que, em vez de mentiras, o aparelho detectava empatia, a maravilhosa capacidade que os seres humanos teoricamente possuem de se colocarem no lugar dos outros. A certa altura, ele disse ao indivíduo sendo testado:
— Viu que bonita a minha pasta? Sabe do que é feita?
— Não.
— Pele de bebê. Bebê humano. É o melhor couro que existe.
O aparelho não registrou qualquer reação de empatia, embora o que fazia o teste demonstrasse todas a atitude de horror esperada. Era andróide, portanto, e foi pro saco.
Er… Era mais ou menos assim, faz mais de quinze anos que li esse livro. Mas o que eu comecei a matutar quando me lembrei dele foi: se a empatia for realmente o que difere homens de máquinas (ou monstros), quantos seres humanos de fato há por aí? Quantos passariam no teste do caçador de andróides?

E no teste da farinha, por falar nisso?

Tá, parei.

20 comments

  1. Cara, ne por nada não, mas se alguem fala essa do couro de bebe pra mim, acho que eu fico rindo o resto da semana… o Detector ia acusar que eu era um Demônio Maléfico!

  2. Ontem, anteontem, sei lá, um empresário perdeu a vida tentando salvar um menino que se afogava. Ele tentou ajudar e pagou um preço alto. Talvez por isso as pessoas não dêem a mínima para nada. Não se arriscariam a molhar o chinelo para ajudar um semelhante. É duro, é duro. Queremos nossa vida em linha reta. Não vou desviar meu caminho para te ajudar – foda-se. Quero assistir a novela hoje à noite.
    Que merda. Se bobear só vamos saber se a vida tem propósito depois da morte. Às vezes eu torço para que tudo acabe aí mesmo. Ponto final. Nem céu, nem inferno, nem chance de tentar de novo. Acabou, game over. A única certeza por enquanto é que nem para adubo a gente presta.

  3. Meu, essa do bebê é cruel… Mas se houvesse um detector um psicotécnico desses, ia muita gente para saco! É uma imposição social que a gente demonstre um sentimento de compaixão, de solidariedade. Fazer o que? Tem gente que é tocada, em gente que não é!

  4. Vai ver que tem algo com a sobrevivência animal de cada um, tipo, quanto menos pessoas existirem, melhor as minhas chances de me sair bem (?), sei lá existem seres sem qualificação na face da terra, quanto ao teste da farinha, sei não quantos passariam com louvor na prova final.
    Beijim.

  5. Uma vez, num antigo blog meu, contei do problema de saúde do meu namorado e falaram algo nos comentários parecido com “que ele morra, ué”. Depois não sabem porque eu não tenho comentários.

  6. Fernando, eu comecei a ler O Gene Egoísta (interrompi a leitura porque me caiu nas mãos uma excelente tradução de Crime e Castigo, e certas leituras não esperam) e, pelo pouco que li, o livro não trata de egoísmo, mas sim dos “esforços” dos genes para subsistirem através das gerações a qualquer custo.

  7. Pessoas insensíveis ao sofrimento alheio sempre foram regra mesmo… e a gente fica horrorizado de perceber que podemos ser assim também!
    A insensibilidade pode ser uma defesa contra o contágio do sofrimento e a impotência, quando não há o que fazer.
    Porém, a gratificação que dá quando conseguimos ajudar… é demais! Mas claro que tem a ver com o inchaço do ego… alívio da consciência e tal…

  8. O q sei é tem fases da vida da gente em q o coração parece q endurece, ficamos mais insensíveis,pode ser simplesmente pelo baixo astral ou talvez a Ana tenha razão e seja msm uma forma de defesa…sei lá.

  9. Cara… parece besteira, mas indo pro interior um anu (passarinho preto e meio besta) saiu do acostamento e me trombou na lateral do carro. Se estivesse mais devagar dava pra ter brecado, talvez mais rápido e ele teria passado depois. Fiquei uma semana com sentimento de culpa! E se fosse uma criança…um indigente… foi brabo.

  10. Sou do tempo desse filme, no filme a pessoa que fazia o teste descreveu uma cena no deserto onde havia uma tartaruga de barriga para cima, o androide (ou a pessoa sendo testada) deveria dizer o que faria na situacao…

  11. Existem algumas observações científicas que dizem que detro de um grupo individuos altruistas tem menos chances de se reproduzir do que os egoistas, mas no confronto entre dois grupos aquele que tiver o maior número de altruistas leva a melhor… Acho que ainda existe alguma chance para a humanidade…;)
    Beijos

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