Os viajantes do tempo

Que eu saiba, o Risadinha (meu amigo tocador de berimbau) quase nunca sonha e quando sonha é com bobagens, como da vez em que sonhou que era um jornal saindo da prensa. Triste. Então ele deve me agradecer por tê-lo levado em meu sonho da última noite, que passo a contar agora.
[bocejo na platéia]
Aconteceu que — sei lá por que meios — eu e Risadinha viajamos para o passado. Chegamos e logo percebemos que estávamos em São Paulo ainda, mas passavam bondes, carroças e aqueles carrinhos antigos na rua. Nossas roupas do século XXI — bermudas cheias de bolsos, camisetas, tênis sem cadarço — chamavam a atenção de quem passava, deixando-nos meio desconfortáveis.
Foi aí que ela veio em nossa direção. Vestia uma roupa meio que de melindrosa, o que me levou a supor que tínhamos viajado para a década de 20. Ela nos cumprimentou, perguntou nossos nomes e disse o seu: Glória. Muito bonita, sorridente e simpática. A princípio pensou que fôssemos estrangeiros, mas descartou a idéia ao ver que falávamos português. Então o Risadinha achou melhor falar logo a verdade:
— Nós viemos do ano 2003. Viajamos no tempo até aqui.
— É mesmo??? Que legal!
Glória se mostrava entusiasmada, mas não descrente: aceitou logo de cara que estava conversando com viajantes do tempo. Seguro com sua confiança, perguntei:
— Em que época estamos? Anos 20, não?
— Não, de jeito nenhum! 1940.
Ela deve ter notado que eu olhava suas roupas, porque emendou:
— Ah, e eu me visto assim porque a moda de agora não me agrada. Roupas muito sérias, muito fechadas, credo! Mas venham, vou mostrar a cidade a vocês. Essa aqui é a Avenida Paulista.
Estava irreconhecível a avenida, com trilhos passando pelo meio e casarões e chácaras dos dois lados. Dois homens juntaram-se a nós no passeio: um era tio de Glória, um senhor risonho de barba branca bem aparada, terno e chapéu marrons, bengala. O outro, amigo dele, era um preto de terno de linho branco, falante e engraçado (embora eu não me lembre de nada do que ele dizia; assim são os sonhos). Andávamos pela Paulista e conversávamos, um passeio muito agradável. Num intervalo da conversa, o Risadinha perguntou:
— E aí, Glória? Quer saber alguma coisa do futuro?
Ela pensou um pouco e fez a pergunta mais inesperada:
— Vai faltar milkshake?
— COMO???
— É que eu adoro milkshake
— Hum — comecei — Teve uma época em que faltou leite. Foi depois do Plano Cruzado, com o Sarney — à menção do nome ex (ou futuro, sei lá)-presidente, os três caíram na risada, sabe Deus por quê. — O povo se empolgou, mas não durou muito. E depois de um tempo começou a faltar leite, carne, tudo.
— E quando vai ser isso?
— 1986, 87, por aí.
— Ah, falta tempo…
Nisso já tínhamos chegado à Consolação, então eu pedi para que nos levassem ao Viaduto do Chá. Fomos para lá. Do outro lado do Vale, o viaduto Santa Ifigênia parecia flutuar no meio da iluminação fraca.
— Olha, Risadinha, que lindo o Santa Ifigênia!
E ele, com a eloqüência de sempre:
— É.
Queríamos ir embora, mas Glória não deixou: primeiro tínhamos que conhecer um amigo dela, um artista. Então fomos para a casa do tal artista. Entramos e eu fiquei um tempo sem reconhecer onde estava. A casa ficava de frente para um parque. Percebi enfim: o parque era o Ibirapuera. Eu tinha demorado para reconhecer porque se parecia mais com o Passeio Público de Curitiba (ah, Curitiba…). Quanto ao tal artista, era um jovem que alugara aquela casa em frente ao parque e era vítima de chacota por isso. O próprio tio da Glória comentou com o amigo:
— Uma casa desse tamanhinho e ele pagando 600 mil réis de aluguel. Em qualquer outro lugar da cidade não sairia por mais de 150.
(Qual era a moeda em 1940???)
Eu queria saber quem era o tal do artista, mas não queria perguntar. Então fiquei zanzando pela casa até encontrar uma gravura de estilo inconfundível na parede. Fui verificar a assinatura só para confirmar, e era ele mesmo: Osvaldo Goeldi. Não estranhem: essas edições das obras de Dostoiévski da Editora 34 são ilustradas com gravuras de Goeldi. Além do mais, o nome da rua onde moro e sempre morei é Osvaldo Goeldi, então eu conheço o cara desde pequeno. Só que hoje eu descobri que ele nasceu em 1895, portanto tinha 45 anos em 1940, e não a idade de Glória. Detalhes, detalhes, vamos em frente!
Saímos da casa do Osvaldo Goeldi e resolvemos voltar para 2003. Só que Glória encasquetou que queria ver um filme, então entrou num cinema sem falar conosco. Entramos atrás e ela estava conversando com o bilheteiro. Os ingressos haviam se esgotado e ela contava para ele (um negão barbudo) que estava com dois amigos que tinham vindo do século XXI e tal. Ele, é claro, não acreditou, então eu quis provar:
— Ô, meu amigo, é só me perguntar qualquer coisa do futuro aí.
— Grande coisa. Como vou saber se é verdade ou não?
— Bom. Sabe a guerra na Europa?
— Sei, sei.
— Então. Tá no começo ainda. Vai até 1945. Os Estados Unidos vão entrar na guerra.
— Até parece…
— Verdade, e o Brasil também. O Eixo vai se dar bem até 1945. Aí o Hitler vai querer invadir a União Soviética, e será derrotado pelo inverno.
— Mané inverno — me interrompeu o Risadinha — Isso aí foi com o Napoleão.
— E com o Hitler também, seu burro.
— Calaboca… A guerra acaba na Europa com a invasão da Normandia.
— Pfff… Bom, tem Hiroshima e Nagazaki.
— É mesmo.
— Hein? — o bilheteiro, entendendo nada.
— Ah, então. Os EUA vão jogar duas bombas atômicas sobre essas cidades. Aí sim a guerra acaba.
— Bah! Me deixa trabalhar, vai. Cambada de doidos…
Saímos de lá muito putos, enquanto Glória e seus dois acompanhantes riam. Mas era hora de ir embora, então nos despedimos.
— Hum… Dois mil e três, né?
— É.
— Acho que não vou estar viva até lá.
— Ué. Quando você nasceu?
— 1920.
— Pode ficar viva até lá sim.
— Bem que vocês podiam me procurar então, né?
— É verdade.
— Então anotem aí: meu nome completo é Glória…
E foi aí que eu e o Risadinha voltamos a 2003. Merda.

24 comments

  1. Porra.
    Tinha que ter o Risadinha na história??
    Sabe o que mais me faz acreditar que esse sonho foi verdadeiro? Nenhum dos dois comeu a Glória…..

  2. Sou antiga leitora-admiradora do JMC, embora nunca tenha me empenhado a deixar um comentário.
    Agora, imploro uma analise particular do meu blog. Seria uma “honra” receber suas criticas. Agora, chega de melação ok, e se der pra dar uma olhadinha lá, agradeço.

  3. Ontem eu li uma edição bem antiga da revista Super Interessante, que falava sobre viagens no tempo. Teoricamente, se vocês tivessem falado ao próprio Hitler que ele ia foder meio mundo, aconteceria um cataclisma espaço-tempo, acabando com duas ou três dimensões quando vocês voltassem ao futuro. E mais, ficariam presos em uma, repetindo os acontecimentos desde a viagem até a volta. É uma coisa bem cíclica.

  4. Ah, esse apelido Risadinha lembro minha infância. Meu pai trabalhava numa empresa em que trabalhava também um motorista, o Risadinha. Lembro que uma vez eu e minha mãe passamos horas tentando fazer com que ele conseguisse falar FIAT. E o danado não conseguia! Espero que o Risadinha ainda esteja vivo. Era muito gente boa.

  5. Eu sou sonâmbulo, do tipo crônico mesmo. Já joguei TV no chão, arranquei cortina e dei cabeçada na escrivaninha. Nas noites corriqueiras, apenas falo muito. As pessoas que dormem ou dormiram comigo (meu irmão e hoje Aline) acabam se acostumando. Mas a sua descrição do seu sonho é tão cheia de detalhes que deixa meus sonhos no chinelo, e olha que até cheiro eles costumam ter, são reais demais. Pergunto, você transcreve tudo exatamente como foi, ou utiliza-se de licença poética? Não quero repreender, pelo contrário, adorei a narrativa, mas só queria saciar minha curiosidade.

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