O revolucionário

Seis e pouco da manhã. Ainda semiconsciente, andava na direção do ponto de ônibus (nem é um ponto, na verdade, só a esquina onde pego o meu fretado. Como se fosse um ponto de ônibus só meu, oh) quando dois vira-latas surgiram da rua transversal. Dobrei a esquina e fui surpreendido por outros oito ou nove cães, uns sentados, outros deitados e um em pé. Essas matilhas de vira-latas são muito comuns no fim da tarde ou à noite, mas não me lembro de alguma vez ter visto uma reunião canina assim tão matinal.
O cachorro que estava em pé (marrom-claro, pata traseira esquerda quebrada, orelha machucada, olhos vermelhos) veio na minha direção e começou a latir. Achei a situação meio vexaminosa, sei lá por quê. Talvez por não saber o que responder aos latidos senti-me como quando estou entre pessoas que falam de assuntos que desconheço. Tentei usar o velho truque de me abaixar para fingir que ia pegar alguma coisa para agredir o cão, mas ele rosnou. Opa. Tenho medo quando eles rosnam. Bati o pé falando “PASSA!” e ele chegou mais perto. Raios. Estava a menos de um metro de mim, olhando fixo pra mim e latindo seu latido monótono. Vez em quando ele se aproximava dos que estavam deitados, e latia alternando o olhar entre eles e eu. Depois virava-se na direção da praça, onde os dois que já haviam se levantado zanzavam, e latia para eles. Os primeiros pareciam constrangidos com a atitude do colega: uns abaixavam a cabeça, outros olhavam sem interesse para mim, outros ainda olhavam por cima da cabeça do barulhento, ignorando-o, como se diz, ostensivamente. Os últimos não davam atenção alguma, queriam mesmo era zanzar na praça (a não ser por uma cadelinha miúda, que eu ainda não tinha visto, a qual atendeu ao chamado dele e ficou latindo pra mim lá do outro lado da rua e sem muita convicção).
Então percebi: tratava-se de um revolucionário. Devia passar dias e noites fazendo suas pregações aos colegas de matilha. Tentava convencê-los de que era hora de por fim à opressão aos cães perpetrada pelo homem. Que urgia (urgia!) conscientizar os cachorros domésticos de sua condição de animais superiores. Que era mister (mister!) despertar toda a nação canina para a realidade da luta de classes, ou melhor, de espécies. Essas coisas de revolucionário, sabem como é? Comecei a compreender a atitude amalucada de certos cães, inserindo-as no contexto (inserindo no contexto, Jesus!) da mentalidade revolucionária. Correr atrás do próprio rabo até ficar tonto seria então uma forma de protesto, ou o símbolo da natureza cíclica do tempo, pois um dia os ancestrais do homem temeram os ancestrais do cão, e tal cenário repetir-se-ia no futuro. Sair latindo atrás dos carros poderia ser um esforço para boicotar os meios de transporte dos humanos (se pelo menos mais cães aderissem à Causa!). Correr atrás do carteiro, então, seria uma forma de atrapalhar os meios de comunicação do inimigo (atitude revolucionária que perdeu muito de sua força depois que inventaram o e-mail).
Enfim, o cão que latia para mim era um revolucionário, e como tal era considerado um chato por seus colegas. Fiquei com pena dele. Meu ônibus chegou e ele foi para a calçada, em silêncio (o vira-lata, não o ônibus). Depois que eu entrei, ele saiu correndo e latindo atrás do ônibus. Incansável companheiro!

35 comments

  1. Em algumas de suas ideias tem mais de escritor de ficção e fantasia do que voce gostaria de admitir.
    Exitiu uma série de história em quadrinhos chamada Sandman – que tratava do hipotético Senhor do reino dos sonhos (muito superior a qualquer deus do sono de qualquer mitologia) e em uma de suas histórias ele trata com uma gata revolucionária bastante similar ao seu cão.
    Conceito é bastante similar.

  2. Marco, já parou pra pensar que podia se tratar apenas de um cachorro seguindo seu instinto de latir?!
    Às vezes, você fantasia muito, até na sua vida pessoal (que não é da minha conta, eu sei!)..
    Simplifique mais as coisas.. não estou te criticando pela estória do cachorro, longe disso, mas você pensa demais, fantasia demais, romancia demais..
    Seja mais simples, mais objetivo..
    É só meu ponto-de-vista, que se foda!!

  3. Não, seu pedaço de asno que sequer tem coragem de assinar seus comentários! Eu acredito MESMO que era um cachorro revolucionário, o Rex Guevara, o Cão Tsé-Tung, o Fiel Castro! Eu uso drogas e o efeito é esse, eu vejo as coisas mais bizarras nos acontecimentos banais! Eu sou doente!
    Certas pessoas não têm mesmo o atributo de humanidade, puta que pariu!

  4. Primeiro, pedaço de asno é mamãe, a sua é claro!
    Se não sabe ler, eu disse que não estava criticando a estória do cachorro.. prometo desenhar da próxima vez!
    Só digo pra você ser mais prático na vida, vá mais direto ao ponto.. do mesmo jeito que vc manda à mim ou à qualquer outro que não pense como você aqui tomar no cú, faça isso no seu dia-a-dia, com que merece, com a porra dos olhos azuis que não te quer, com o bicha que disse nunca broxar e que te irrita..
    Pára de fantasiar e realize alguma coisa!

  5. Palmas para o “Straight IN the point”!
    Marco, cuidado quando escrever sobre o urubu novamente. Já parou para pensar que o urubu é somente uma ave? Sabia que ele não é um analista seguidor de Freud?
    ¬¬

  6. Nossa, que cara nervoso esse tal de Straight in the point… Que falta de imaginação e de ludicidade! Aposto que ele nunca gostou de desenhos da Disney, nem de Procurando Nemo, o que diremos de K9 e Lassie 🙂

  7. daqui a pouco o desinfeliz de inglês ruim vai escrever pro paul auster dizendo que cachorro não pensa e não conhece geografia (afinal onde é mesmo timbuktu??)
    😛
    sobre o conto dos gatos, do gaiman, é muito bom e também lembrei dele quando li seu post. mas lembrei mais mesmo de timbuktu.
    beijos, dimonho.

  8. Beleza esse conto! Aqui perdo de casa é assim mesmo. Tem uma matilha que vive rondando por aqui. Muito esquisitos.
    Certa vez, me recordo que um deles morreu atropelado (Por uma pick-up por sinal). Vi a cena de manhã ao ir para a aula. Quando voutei, o cachorro (que estava Proximo à vala) estava na calçada (Calçada bem fudida e abandonada) com todos os outros em volta uivando. O que mais me impresiona é que acho que foram os proprios cachorros que arrastaram o corpo para a calçada, e ainda estavam protegendo o corpo dos urubus, que ameaçavam o amigo defunto.

  9. Perto de casa uma vez só chegaram a ficar uns 4 pela manhã latindo verozmente por causa de uma manilha… Depois todos ficaram quietos e só um latia feito louco por causa que ele era o da manilha…
    (Perdi meu gardenal)

  10. ôU, só uma perguntinha, porque mesmo que o MarcOurélio tem que “ser mais prático na vida” ou “ir mais direto ao ponto”.
    Eu juro que entendi que vc. pense que isso aqui é a VIDA dele.
    Ele já deve fazer isso (ser práticoa e direto) o dia inteiro: no trabalho, em casa, no banco… e ainda ter que ser prático aqui???? fala sério.

  11. Estava eu indo comprar minha passagem, agora mesmo, para Marilia e refletindo sobre as viagens do Marco Aurélio.. O que vejo? “MarcoPolo”. Tá explicado. (Eu sei, fui fraca, muito fraca em não guardar esse trocadilho só para mim =-/ )

  12. Estava eu indo comprar minha passagem, agora mesmo, para Marilia e refletindo sobre as viagens do Marco Aurélio.. O que vejo? “MarcoPolo”. Tá explicado. (Eu sei, fui fraca, muito fraca em não guardar esse trocadilho só para mim =-/ )

  13. Vi esse post genial e os comments ontem… estou rindo ate agora da conversa c o cara que está DENTRO do ponto (como é q ele consegue??) e do “contra pequinês vote 16″…. hahahahahaha, muito boa!!

  14. Assim como este cão, ainda existe revolucionário espalhados por este mundo que tentam convencer outros de suas causas e idéais. O que seria do mundo se não fosse Che Guevara para lutar por um país livre da submissão dos EUA? No começo era apenas um homem com idéias socialistas junto com mais uns dez, e mesmo que sua voz não fosse ouvida por todo o país, conseguiu, mesmo depois de sua morte mostrar que mesmo que muitos digam que vc não irá conseguir, deve sontinuar a lutar pelos seus idéais, pois mais vale uma pessoa que lutou por algo do que aqueles que desistiram no primeiro fracasso.
    E assim é esse cão, e muitas pessoas espalhadas por este mundo.

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