Acauã

Sempre que o tempo fecha em São Paulo, naquela ameaça prolongada de chuva, lembro-me de minha avó paterna, Dona Silvana, que nasceu e viveu quase toda a vida em Monte Santo, sertão baiano. Quando estava por aqui e via as nuvens crescerem, pintando todo o céu de chumbo, olhava fixo para cima e murmurava:
— Que tempo bonito…
A chuva era uma bênção, um milagre esperado com ansiedade por todos, e um pouco forçado pelas novenas e procissões dos católicos — meus avós, batistas, apenas lamentavam a ignorância do povo que se deixava explorar pelos padres.
Quando meu avô ligava lá para casa — Seu Júlio tinha que andar seis quilômetros até a cidade para usar o único telefone da região — o diálogo com meu pai seguia sempre a mesma fórmula, inevitável entre dois homens de poucas palavras. Então cresci ouvindo meu pai ao telefone:
— Bença, papai… Amém… E mamãe, como está?… Graças a Deus… E a chuva?
A chuva em Monte Santo era tema corrente em casa, e torcíamos e esperávamos por ela como se lá estivéssemos, mesmo que São Paulo estivesse sofrendo com os alagamentos de sempre.
Estava pensando em coisas assim quando vi que Ruy Goiaba botou Luiz Gonzaga em seu seleto panteão. Quando eu era criança, Gonzagão me impressionava menos pela música do que pelo fato de ainda fazer shows e gravar discos com a idade que tinha, fato sempre reforçado pelo meu pai:
— Esse aí tem a idade do meu pai, como é que ainda agüenta o acordeão? — Seu Lindauro falar algo mundano como "sanfona"? Nem pensar!
Com o tempo fui pegando gosto pelas canções do Lua, e hoje sou um conhecedor razoável de sua obra. Uma música, no entanto, me emociona acima das outras: Acauã, composta por ele e Zé Dantas. Tem nada a ver comigo: sou um jovem paulistano, e da Bahia onde estão minhas origens só conheço (mal) a aprazível região do sul. Ainda assim, a canção faz ressoar algo aqui dentro, algum atavismo insuspeitado, sei lá. Talvez seja porque a aridez, os espinhos e a insalubridade do sertão combinem tão bem com minha personalidade. Não há litoral em meu espírito.
Acauã
Acauã, acauã vive cantando,
durante o tempo do verão,
no silêncio da estrada aboiando,
chamando a seca pro sertão,
chamando a seca pro sertão.
Ai cauã, ai cauã
teu canto é penoso e faz medo
te cala acauã,
que é pra chuva voltar cedo.
Toda noite no sertão,
cantam joão-corta-pau,
a coruja, mãe da lua,
apeitique e o bacurau,
na alegria do inverno
canta sapo, jia e rã,
mas na tristeza da seca,
só se ouve acauã,
só se ouve acauã.

8 comments

  1. Desculpa aí, Marco, mas pra não virar o baião do acauã doido, é melhor dar um peteleco nesse H aí do final. O certo é “só se ouve acauã”, do verbo “ouvir”, né não ?

  2. Pô, Marco… c tá de sacanagem… primeiro Adoniran, agora Gonzagão ? Logo os dois que mais gosto…
    Gonzaga foi um gênio, e muita gente nem sequer suspeita disso…
    Abraços !!!

  3. Cara, parabéns. Acompanho o site a pouco tempo e acho muito bom. Sou do mesmo Estado do velho Lua (Pernambuco) e percebo que por aqui o pessoal tem se importado mais com o forró eletronico do que com as próprias raízes. Gonzagão era mestre. Só ele cantava o nordeste com tanto amor. Qualquer coisa é só escrever. Abraço e tome Chicotada!

  4. Foi muito legal de sua parte relembrar o que as pessoas da região nordeste e a fins, nem que seja por um momento faz qualquer um parar para pensar melhor na vida e aquilo que para muitos é importante e desconsideramos pelo simples fato de tê-lo.

  5. Teu espírito pode não ter o litoral que merece, mas há meios de reaver a beleza de um beira-mar… E você, sem dúvida, e com textos como esse, e com o sentimento que consegue passar quando fala com tanto respeito de seus pais e familiares, achou um meio de fazer desparecer muita dessa aridez.
    Muito bonito mesmo, Corélio.
    PS: É nessas horas que me arrependo de certas coisas que digo (ou que disse).

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