Dotô Edson

Sei lá o que tinha me dado nesses últimos tempos, mas andava com uma preguiça danada de ler. Mas semana passada finalmente criei coragem para começar O Idiota, de Fiodor Dostoiévski.
— Que metido! Só pra falar que lê Dostoiévski!
Puta que pariu, eu queria saber quem foi o imbecil que inventou que Dostoiévski é uma leitura difícil. Claro que ele tem livros excelentes, bons e medíocres, como todo escritor. Mas os livros bons, como Os Irmãos Karamazóvi, Recordações da Casa dos Mortos e este O Idiota, são de uma leitura agradabilíssima.
Querem um exemplo? Tem uma cena deste livro em que a noiva de um personagem vai visitar a família do noivo de surpresa. O pai dele, um general reformado, entra na sala e começa a contar uma história ótima. Leiam:
“— É uma história tola, e de duas palavras — começou o general com fatuidade. — Coisa de quase dois anos atrás! Haviam acabado de inaugurar a nova estrada de ferro, eu (já em traje civil) tratando de umas questõs sumamente importantes para mim e relacionadas com a entrega do meu serviço, comprei uma passagem e fui para a primeira classe: entrei, sentei-me, comecei a fumar. Isto é, continuei a fumar, porque tinha acendido o charuto antes. Estou sozinho no vagão. Fumar não é proibido mas também não é permitido; ou seja, é semipermitido, como de costume; e isso dependendo da pessoa. A janela está aberta. De repente, bem antes do apito, instalam-se duas damas com um totó, bem à minha frente; chegaram atrasadas; uma estava vestida da forma mais elegante, de azul claro; a outra, mais simples, metida em um vestido de seda preto desbotado. Eu sou bem apessoado, elas olham com desdém, falam inglês. Eu, é claro, não ligo; continuo fumando. Isto é, eu quis refletir, mas, não obstante, continuo fumando porque a janela está aberta, e fumando para fora da janela. O totó está no colo da senhora de azul claro, é pequeno, cabe na minha mão, preto, patinhas brancas, até uma raridade. Coleira de prata com uns dizeres. Eu não ligo. Observo apenas que as damas, parece, estão zangadas com o charuto, é claro. Uma aponta para mim o lornhão, de osso de tartaruga. Mais uma vez não ligo: porque não falam nada mesmo! Se dissessem alguma coisa, se avisassem, se pedissem, porque para isso existe finalmente a linguagem humana! No entanto, calam… De repente — e isso sem aviso, sem o mínimo, estou lhe dizendo, isto é, sem o mais mínimo, todavia como se tivesse ficado totalmente louca —, a de azul claro me arranca da mão o charuto e o joga pela janela. O trem voa, fico olhando como louco. Uma mulher selvagem; selvagem mulher, movida totalmente por seu estado selvagem; mas, por outro lado, é uma mulher da estrada, corpulenta, gorda, alta, loura, corada (até demais), os olhos brilham na minha direção, e eu, sem dizer uma palavra e com uma gentileza incomum, com a mais perfeita gentileza, a gentileza mais refinada, por assim dizer, aproximo dois dedos do totó, pego-o delicadamente pela nuca e o arremesso janela afora atrás do charuto! Ele apenas dá um ganido! O trem continua voando (…) E eu estou certo, estou certo, três vezes certo! — continuou com ardor triunfante o general. — Porque se no trem charuto está proibido, cachorro três vezes mais ainda.”
Muito bem, o que há de complicado aí? Tirando o tal do “lornhão”, que eu tive que olhar no dicionário para saber que se trata daqueles oclinhos com uma vareta comprida, é apenas uma história engraçada e muito bem contada. Nego tenta formar uma aura ao redor da obra de Dostoiévski (e de muitos outros), para fazer parecer que é inalcançável a quem não faz parte de um certo clubinho de intelectualóides aveadados.
Não caiam nessa. Leiam Dostoiévski. Vale a pena e não dói.

43 comments

  1. Gostei da dica MarcúReliú, vou anotar pra não esquecer, Dostoiévsking, certo?!
    🙂
    (e o final da história? a gorda foi pra cima dele? jogou-o pela janela do trem? o cachorro voltou com o charuto na boca?.. o final Marcú, conta o final, porra!)

  2. DOSTOIEVSKI É MUUUUUUUUUUUUUUUUITO FODA!!!!! É UM MACHADO DE ASSIS RUSSO, MAIS REALISTA E APAIXONADO!!!!! IRMÃOS KARAMAZOVI É DEMAIS!!!!!!! O MELHOR LIVRO QUE EU JÁ LI NA VIDA!!!
    Só pra você ter idéiä: Em O Idiota, mais pra frente, tem uma hora em que o Príncipe Míchkin fica doente, de cama. E aí tem uma daquelas cenas extremamente bagunçadas e movimentadas que o Dostoiévski gosta de fazer (esse livro, em especial, tá cheio disso), com um monte de gente no quarto do cara. E ele começa a se sentir mal, com febre, etc… Aí, eu comecei a me sentir mal, também, com febre, quente prá burro, e pensei: “Nossa, eu entrei muito no clima do livro! Até estou sentindo febre!”. No dia seguinte é que eu fui descobrir que estava gripado…
    Moral da História: Dostoiévski é tão foda que a gente fica doente, se sente mal, e nem se dá conta, acha que é porque entrou no clima do livro (pra ter uma idéia de COMO é o clima do livro!!).

  3. Porra, eu ia justamente fazer essa comparação com o Machado de Assis. Mesmo porque a Rússia que o Dostoiévski retrata parece muito o Brasil: Todo mundo se acha malandro pra caralho, um quer passar a perna no outro, e no fim são todos uns ridículos que ficam babando ovo de gringo.

  4. Essa da tradução é verdade… O melhor é ler a tradução direta do russo. Isso porque o russo é uma língua bastante parecida com o português (pelo menos assim diz quem fala russo e português), cheio de gírias, expressões, e bastante quente, pessoal, informal.
    O que acontece é que, até alguns anos atrás, só existia tradução indireta, do Francês. Aí o livro perde muito de sua expressividade, de sua emotividade, e fica, em alguns trechos, meio chatinho, mesmo. É porque o francês é uma língua muito mais rígida e formal… Os caras ficam se chamando de “Vós”, e os personagens perdem muito de suas características (que são dadas principalmente pela linguagem em que se expressam).
    Moral da História: Dostoiévski traduzido do francês é foda. E muito bom. Mas Dostoiévski traduzido do russo é EXTREMAMENTE FODA E INCRIVELMENTE E EXTRAORDINARIAMENTE BOM!!!!
    PS: Lornhão é aquilo que se conhece, em português (apud Machado de Assis), por pince-nez ;)!

  5. É, a Rússia que ele descreve é praticamente o Brasil do séc. XIX. Além dessa coisa da Malandragem, é um povo extremamente apaixonado (no sentido de sofrer emoções fortes) o que o Dostoiévski nos mostra (e, pelo que eu sei da Rússia, é assim até hoje). Além disso, toda a questão da Burocracia do Estado, que também era forte no Brasil, nessa época, e a importância das terras… A única coisa que eu acho que o Brasil não tinha, nessa época, era essa nobreza forte que tinha a Rússia. Mas o mesmo papel era desempenhado pela Corte e pela Alta Burocracia do Estado.

  6. E esse personagem é um dos meus preferidos, no livro.. Acho que são: o Príncipe Míchkin, a tal da noiva que você mencionou (não lembro o nome dela… mas é quase uma Gruchenka, dos Irmãos Karamazóvi – e o Príncipe Míchkin é o Dimitri Karamazóvi ;)) e esse general. E, em um determinado momento do livro, aquela mais nova das três irmãs (é Aglaia, né?).
    (Putz, o mais difícil de ler Dostoiévski é se habituar aos nomes russos… ).
    PS: Por que Dotô Edson?

  7. Hehehe… Crime e Castigo é o piorzinho que eu li do Dostoiévski.. Pior que esse, dos que eu li, só Noites Brancas (mas esse nem parece que é Dostoiévski, é meio romantiquinho…).
    Engraçado ter sido o que ficou mais famoso, né?

  8. Tem um pior. Os Possessos. Li 50 páginas e desisti.
    Putz, os nomes russos são foda. E cada hora ele chama o personagem de um jeito: Pelo sobrenome, depois pelo nome e patronímico, depois pelo apelido. E isso pra cada um dos 1.547 personagens.

  9. O pior são os apelidos! A gente nunca sabe se é a mesma pessoa..
    E a gente confunde o Patronímico de uma pessoa com o nome da outra..

  10. “Que os lagartos se devorem”, nos Irmãos Karamazovi, é uma das frases mais fodas de toda a literatura de todo o Universo de todo o Tudo!

  11. tenho sérias dúvidas sobre o que é pior…charuto ou cachorro de madame. acho que charuto é invasivo e só por isso já é insuportável. mas, ora, eu não aturo cachorro de madame…me desculpem mas não dá…a futilidade transformou o bichinho em objedo de escalonagem social…um viva para as pulgas!!!
    dostoiévski seria um bom blogueiro.

  12. Não é difícil, não é ruim, eu gosto…. Aconte ce q o brasileiro normalmente não tem tempo pra ler… Ler em busocas ou metrô não é muito comum por aqui…
    Enfim….
    Boa leitura!

  13. A editora Ediouro relançou recentemente (coisa de dois anos atrás) todas as obras do Dostoiévski traduzidas direto do russo, o que aumentou o valor literário da obra significativamente. Muitas figuras e expressões tinham ficado perdidas nas traduções da versão em inglês.
    Eu mesmo estou lendo Os Irmãos Karamázov. A questão da dificuldade não é a linguagem, Marco, mesmo porque o vocabulário do original é em russo e não fazemos a menor idéia da complexidade dele. Mas uma coisa que é difícil que o Walter mencionou é a complexidade das cenas, como Dostoiévski coloca e descreve as ações, emoções, pensamentos e falas dos personagens. É ao mesmo tempo confuso e envolvente. E ele consegue criar um suspense quanto ao desenrolar dos fatos impressionante. Eu já sei que o personagem principal mata o pai dele porque ele nos diz isso logo no início, mas já passei da metade do livro e ainda não aconteceu, só vemos a trama se complicar! É extraordinário!
    Um professor já me disse que os russos são excelentes romancistas, que eles conseguiram pegar uma pedra e fazê-la o personagem principal de um romance, e que este seria interessante pelas descrições e tramas. Uma bela dica e ótima leitura, Marco.

  14. Concordo inteiramente com o Marco Aurélio. Dostoiévski é duca e não tem nada de “difícil”. E só discordo um pouco do Walter quando ele acha “Crime e Castigo” o mais fraquinho. Toda a teoria que o Raskolnikov desenvolve para justificar o assassinato da velha usuária é um dos grandes momentos da literatura, na minha “humirde” opinião. E, Roberto, é a Editora 34 que está lançando as traduções diretas do russo, feitas por um camarada (epa!) chamado Paulo Bezerra. Já saíram, por essa editora, “Crime e Castigo” e “O Idiota”. Abraços gerais.

  15. Ô, Frances, eu tenho a impressão de que as traduções da Ediouro não são diretas do russo, não. Mas posso estar enganado. Depois vou dar uma olhada no meu volume dos “Irmãos Karamazov”, que ficou em casa. Amplexos.

  16. Mais um comentário, só pra corrigir (digitação de merda esta minha). Onde está escrito “usuária”, leia-se “usurária”. Desculpem pelo abuso do espaço.

  17. Tem razão Ruy, é a editora 34. A que eu tenho é a mesma que a sua, da editora Ediouro, pois a 34 ainda não lançou Os Irmãos Karamázov. Mas eu creio que seja traduzido direto do russo, pois não há no livro alusão sobre uma tradução de uma versão em inglês.

  18. Quanto à semelhança do ruso com o português: procede. A gramática russa manteve muitas características da gramática do latim, só os caracteres que são do alfabeto cirílico. Por isso há uma certa facilidade em traduzir as consatruções de frase do russo pro português e francês. Mas, por incrível que pareça, a gramática que mais se aproxima da russa é a alemã. Ambas mantiveram toda aquela questão dos casos das palavras.

  19. Meu esse cara é muito bom as obras dele são fantasticas, ja li todas é muito foda.
    (todo mundo fala isso vou falar tb mesmo sem nunca ter ouvido falar nesse cara)

  20. Tolstoi tb. É ainda mais fácil, Anna Karenina é um novelão. Agora, creia-me… não é qualquer um que consegue ler esses autores, não. Tem gente que não consegue nem ler… e olha que eu não estou falando de analfabetos.

  21. Reduzir Dostoievski à mediocridade é medíocre. Não é autor de andar nas citações de intelectualóides, a exemplo de Nietzsche. É, sim, um clássico fantástico e tecnicamente perfeito como romance. Crime e Castigo é uma obra-prima, que aborda um plural de questões, de epistemológicas a políticas. Enfim, ele é fodão! Romântico, porém fodão!

  22. Gosto dele, algumas leituras realmente são chatinhas, mas nada supera TODOS OS PERSONAGENS SEMPRE SEREM CHAMADOS PELOS DOIS NOMES RUSSOS!!!
    Dúvida?
    Se um triangulo pra baixo é símbolo do movimento gay, eu triangulo pra cima é símbolo do não movimento não gay?
    Se sim for a resposta, a estrela de DAVI que é formada por um triangulo para baixo e um para cima prova a bissexualidade do Patriarca DAVI?
    Por favor anseio por respostas.

  23. Tentei ler os Irmãos Karamazov e parei no capítulo 2; a leitura é meio entediante. Conheço Dostoyevsky mais pelos contos, pois aprecio literatura russa. A propósito, na Rússia é comum chamar as pessoas pelo nome e patronímico; meu marido (mezzo-russo, mezzo-italiano com umas pitadas de português) seria o famoso Pavel Antonitch…

  24. Há coisa de 40 anos atrás li uma piada do Condorito (http://condorito.cl/), tradicional personagem chileno dos quadrinhos. Eram, na verdade, duas piadas, que ele chamava de existencialistas. Talvez o termo “dialéticas” fosse mais apropriado. Enfim, aqui vão as tais piadas: 1) Um sujeito conta as barras de gelo que estão sendo descarregadas do seu caminhão. 1, 2, 3,…, 98, 99, 100. O sujeito que recebeu as barras diz que está faltando uma: conta 1, 2, 3, …97, 98, 99. O entregador reconta: 1, 2, 3, …98, 99, 100. Mais uma vez o outro reconta e chega à conclusão de que foram entregues 99 barras. Fim da piada n° 1 (sic).
    2) A madame entra na cabine do trem segurando um cachorrinho no colo. Cachorrinho de madame, naturalmente. Sentado à sua frente, um homem fumando um cachimbo (bem poderia ser um charuto…). Assim que o vê, a senhora lhe dirige um olhar de reprovação. Para piorar, a cada baforada de fumaça o cachorro late irritado e irritante. Depois de alguns instantes, a senhora se queixa da fumaça e pede ao passageiro que apague o seu cachimbo. Ele se recusa, sugerindo que ela procurasse outra cabine. O bate-boca vai engrossando, até que a senhora dá um ultimatum: ou o sujeito apaga o cachimbo, ou ela mesma se encarregaria de jogá-lo pela janela. Ele não se intimida: se ela jogar o cachimbo, ele joga o cachorro. Dito e feito. O cachimbo é atirado pela janela e, de imediato, o cachorro tem o mesmo destino. A discussão se prolonga até bem depois do desembarque e, quando parecia não haver mais argumentos, eles percebem a figura do cachorro andando pela linha do trem, carregando um objeto na boca. Neste momento, podemos afirmar que se trata do cachimbo, certo ? Errado! Ele carregava a barra de gelo que faltava na primeira piada.

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