O urubu

Então, hoje de manhã fui até o fumódromo para minha já tradicional caça à capivara. Não vi nenhuma, claro. Mas vi três garças. E o urubu que voa baixo resolveu voltar. Ficou passando na janela
— Aê, mané! Manezão!
Cansado de tanta petulância, achei que era hora de chamá-lo para conversar. Abri a janela, acenei, e ele não se fez de rogado.
— E aê, mané?
— Beleza, urubu. Senta aí.
— Sentar? E urubu lá tem bunda?
— Tá, tá. Empoleire-se num canto aí.
— Melhor. E aê, mané? Remoendo tudo aí dentro e procurando capivaras no rio?
— É isso aí. Sabe como é. As coisas acontecem com a gente, e a gente fica triste. Acho que você entende.
— Bah, você sabe que não é verdade. Acontecendo alguma coisa, ou não acontecendo nada, você vai sempre ser triste.
— Talvez. Meu irmão disse que eu fico buscando as coisas ruins na minha vida, em vez de me apegar às boas.
— É, deve ser por isso. Mas tem aquela outra coisa também…
— O quê?
— Você sabe.
— Sei?
— Claro que sabe. A consciência da morte. Você pensa nela o tempo todo. E, como na beira de um abismo, fica paralisado por toda a grandeza e terror que há na morte.
— Hum… Urubus não têm consciência da morte?
— Temos. Mas aceitamos melhor. A morte é nosso alimento.
— Ué, nosso também. Comemos plantas mortas, animais mortos.
— Não é a mesma coisa. Você nunca matou um boi. Há pessoas lá longe que fazem isso para você, e a carne chega até você sem se parecer em nada com um boi.
— E que diferença faz?
— Faz toda a diferença! Veja bem, nós urubus esperamos a morte. Não aceleramos o processo. Esperamos que morra um boi, um carneiro, um rato, até uma de suas tão queridas capivaras. E então vamos lá, com muita reverência, nos alimentarmos dos restos daquele ser. Não tentamos fingir que aquilo é um bife. Não passamos pelo fogo e pelo sal, não separamos o pêlo da carne. Encaramos a morte crua.
— Acho que entendi.
— Muito me surpreende, sendo você o grande mané que é.
— Hum… Sabe? Eu nunca vi um urubu morto.
— Isso é um segredo entre a morte e os urubus.
— Respeito isso.
— Que bom. Então, vou nessa.
— Té mais, urubu. Gostei de ter essa conversa com você.
— Foda-se.
E saiu voando em círculos em direção ao Robocop.

16 comments

  1. Só falta daqui a algum tempo você me falar que esta história também é fictícia, como o Balde de Gelo e o Chicote Verbal.
    Como você é cruel com meus sentimentos!

  2. Não há nenhum registro de urubu que tenha recheado a pança com a carcaça de uma ave da mesma espécie, embora cientistas digam que inexiste impedimento biológico para o canibalismo entre urubus. Aprendi com a Manu. Filho também é cultura.

Deixe uma resposta para Alessandra Cancelar resposta